segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Algumas considerações sobre Διδαχή 9, 1- 10, 7

Titulo e início do texto da Didache no Codex Hierosolymitanus (1056 d.C.)

As seguintes considerações são fruto das notas em sala de aula durante a lição de Literatura Cristã Grega Antiga realizada pelo prof. Dr. Roberto Fusco, especialista em literatura Bizantina.

O capítulo 9 da Didache apresentaria a descrição de um rito que pode ser considerado a primeira codificação ritualistica  do culto cristão por excelência, isto é, a eucaristia.? A resposta depende do significado do vocabulo εὐχαριστία que aparece pela primeira vez na literatura grega cristã no escrito em questão.
No início da seção (9,1), a efeito de título, encontra-se a expressão  Περὶ δὲ τῆς εὐχαριστίας. O termo εὐχαριστία não aparece no Novo Testamento, enquanto o verbo correspondente (eucharistéw) é que entra no contexto do conjunto dos gestos de Cristo na ùltima Ceia com o significado de "render graças": Mt 26,27; Mc 14,23; I Cor 11,24, sempre no particípio aoristo 1( eucharistesas). No ambito clássico designa o ato de agadecimento, a gratidão, acepção aliás mantida por longo tempo em ambito cristão, onde muito rapidamente assume a velencia técnica de caráter sacramental associada ao sacrifício eucarístico, ou um sentido mais específico relativo à oração ou à matéria eucarística. Sobre o significado do vocabulo na Didache foram levantadas várias hipóteses: ou refere-se a uma forma de benção durante uma simples tipologia de banquete fraterno de natureza a-ritual, ou a um banquete de caráter não propriamente sacramental, mas estreitamente associado à Fractio Panis propriamente dita, sendo uma espécie de ágape fraterno, ou refere-se às orações que fazem parte de uma verdadeira e própria liturgia eucarística.
Outro ponto de destaque é a referência sobre o cálice: πρῶτον περὶ τοῦ ποτηρίονυ: a oração inicia-se primeiramente sobre o cálice. A ordem inversa em relação à Liturgia da Igreja que se fundamenta em Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; 1 Cor 22, 23-25, é confirmada, porém, em Lc 22, 17-19 e 1 Cor 10, 16. Esta inversão, que à primeira vista poderia excluir a acepção litúrgica do termo εὐχαριστία na Didache, pode muito bem ser considerada como um reflexo de costumes propriamente judaicos ou, contrariamente, uma manifestação, por contraste, da novidade do rito da Nova Aliança.
A expressão ὥσπερ ἦν τοῦτο τὸ κλάσμα διεσκορπισμένον ἐπάνω τῶν ὀρέων pode muito bem ser um eco da "multiplicação os pães". A noção do pão fracionado e do fragmento de pão é bem conhecida no cristianismo primitivo. O termo  κλάσμα, por exemplo, é usado nos sinóticos para designar os fragmentos recolhidos após a multipllicação dos pães (Mt 14,20; Mc 6, 43; Lc 9, 17). Em 1 Cor 10,16 o verbo  κλάω designa o gesto que está coligado à comunhão com o Corpo de Cristo, elemento que contra-distingue e identifica o próprio Cristo no encontro de Emaús (Lc 24,35) e que em At 2, 42 torna-se uma das primeiras formas de designação do rito eucarístico.
Outra expressão importante para esclarecer o significado do termo εὐχαριστία na Didache é μηδεὶς δὲ φαγέτω μηδὲ πιέτω ἀπὸ τῆς εὐχαριστίας ὑμῶν, ἀλλ’ οἱ βαπτισθέντες εἰς ὄνομα κυρίου·  Tal proibição denota um forte valor ritual e técnico ao termo, embora ainda não pode feche definitivamente a questão
Divisor de águas pode ser a expressão Μετὰ δὲ τὸ ἐμπλησθῆναι οὗτως εὐχαριστήσατε, no início do capítulo 10. Tomada num sentido literal, comprovaria a presença de um banquete entre a primeira e a segunda "ação de graças", todavia, uma leitura em chave alegórica, interpretando τὸ ἐμπλησθῆναι, isto é, a noção de saciedade, em sentido espiritual, permitiria entrever no capítulo 10 uma espécie embrionária de oração após a Comunhão. Isto dependeria do sentido das expressões do v.6 que conclui a descrição das orações: ἐλθέτω χάρις καὶ παρελθέτω ὁ κόσμος οὗτος. Ὡσαννὰ τῷ θεῷ Δαυείδ. εἴ τις ἅγιός ἐστιν, ἐρχέσθω· εἴ τις οὐκ ἔστι, μετανοείτω· μαρὰν ἀθά· ἀμήν. Parece que estmos diante de um diálogo litúrgico, pois não haveria sentido se fosse pronunciadas pela mesma pessoa, pois a fraseologia é quebrada num ritmo de aclamação e resposta à aclamação, por exemplo: enquanto o sacerdote ou outro ministro diz: Venha a Graça e passe este mundo! a expressão "Hosana ao Deus de Davi" parece ser uma resposta à aclamação anterior. Lembremo-nos que tal expressão esta ligada aos últimos dias de Jesus em Jerusalém e pode ser uma resposta ao termo Graça da aclamação anterior, que indicaria a economia salvífica do NT efetuada na véspera da Paixão, e portanto coligada indubitavelmente também à Última Ceia. Depois há outra aclamação: Se há algum santo aproxime-se, se não, converta-se (mude de mentalidade, lit.) ao que outra pessoa responderia: Maranathá. Amém! Seria este diálogo algo equivalente ao atual: Felizes os convidados para a Ceia do Senhor: eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?
Todos estes elementos não fecham a questão, mas nos apontam numa mesma direção: o termo εὐχαριστία designa não um gesto qualquer de ação de graças, mas está ligado à descrição de uma liturgia "eucarística" muito antiga, talvez uma das primeiras tentativas de codificação do ritual mais importante dos cristãos.

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