terça-feira, 28 de setembro de 2010

"Dilatandis Litteris": um estudo sobre Cícero e a pronúncia rústica

M.T. Cicero, Musei Capitolini

Pode-se afirmar que nos tratados de oratória de Cícero emerja pela primeira vez de maneira clara uma contraposição entre norma "urbana" e uso "rústico" no repertório linguistico da língua latina. Apesar de não faltarem em autores precedentes acenos sobre a existência de diferenças entre o latim da Urbs e aquele da periferia (basta evocar as comédias de Plauto, principalmente Praeneste, Trinnumus e Truculentus, ou alguns passos do "doctus et perurbanus" Lucilio), Cícero é seguramente o primeiro a se preocupar em explicitar e definir o novo cânon lingüístico latino que será o modelo do latim falado e escrito junto a literatas, oradores e gramáticos dos séculos posteriores, criando, ao mesmo tempo, um singular caso de descontinuidade documentária. Este é o argumento do estudo realizado por Marco Mancini, cujo texto integral segue no link abaixo:

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

AD STVDIVM PATRVM ECCLESIAE PROMOVENDVM:

Caravaggio, S. Jerônimo (1605-1606, Galleria Borghese - Roma)


Enrico dal Covolo

OS PADRES DA IGREJA, MESTRES DA FORMAÇÃO SACERDOTAL

CAPÍTULO I
Indicações metodológicas e bibliográficas

1. Introdução ao tema, tendo como referência a Pastores dabo vobis (=PDV)
No que diz respeito à formação sacerdotal, a referência às origens da Igreja não apenas é útil, mas até “obrigatória”. Por sua proximidade cronológica em relação a Cristo e aos apóstolos, a Igreja das origens é testemunha privilegiada do relacionamento de formação que Jesus estabeleceu com seus discípulos, relacionamento a que a Igreja sempre deverá voltar para captar o verdadeiro significado da formação presbiteral .

A referência aos Padres da Igreja como mestres de formação sacerdotal atravessa implicitamente as muitas páginas da Exortação Apostólica Sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais (PDV), e está presente nesse documento também de modo explícito, sobretudo nas citações de Santo Agostinho (onze) e de outros Padres (como Cipriano e Beda).

Além disso, ao falar da formação teológica do presbítero, a Exortação afirma que o estudo da Palavra de Deus, “alma de toda a teologia”, deve ser guiado pela leitura dos Padres da Igreja e dos pronunciamentos do Magistério .

Mas não pretendo me limitar à resenha e à análise das citações patrísticas presentes na PDV. Prefiro refletir sobre a questão de fundo, que definitivamente subjaz a essas citações, a saber: em que sentido os Padres da Igreja são mestres da formação sacerdotal?

Daremos encaminhamento à reflexão examinando separadamente os dois aspectos da questão. Em primeiro lugar, desenvolveremos o tema da formação sacerdotal nos Padres da Igreja (que é o tema mais importante destas páginas, a que voltaremos nos próximos capítulos, selecionando alguns dos textos mais significativos para comentário e reflexão); em segundo lugar, trataremos do estudo dos Padres na formação do presbítero (que não é uma questão marginal, especialmente para quem de alguma forma está interessado nos problemas relacionados à organização dos estudos nos seminários e nos institutos teológicos).


2. A formação sacerdotal nos Padres da Igreja. O exemplo do bispo Ambrósio
Poucos meses antes do Sínodo dedicado à formação sacerdotal (setembro-outubro de 1990), a Faculdade de Letras Cristãs e Clássicas da Universidade Salesiana (Pontificium Institutum Altioris Latinitatis) realizou um congresso sobre o tema: “A formação para o sacerdócio ministerial na catequese e no testemunho de vida dos Padres” (Roma, 15-17 de março de 1990) .

Esse congresso pretendia oferecer à Assembleia Sinodal uma contribuição científica qualificada, do ponto de vista histórico-catequético. Suas Atas foram publicadas em 1992, num livro que continua a ser fundamental para delinear uma série de aspectos da formação sacerdotal nos Padres da Igreja . Esta parte de nosso texto é um ensaio sobre esse livro, escolhendo como ponto de referência o bispo Ambrósio de Milão (337 ou 339-397) e as duas conferências dedicadas a ele no congresso, de G. Coppa e J. Janssens.



A conferência de G. Coppa - bastante ampla e articulada – repassa sistematicamente a vida e a obra de Ambrósio, para delas extrair as mais notáveis instâncias da formação humana, espiritual e pastoral do presbítero.

Essas instâncias se manifestam ricas em conteúdo teológico e indicações práticas, e são enquadradas numa perspectiva do sacerdócio que apresenta algumas características precisas.

Tal perspectiva é crística, como de resto é a orientação de toda a obra ambrosiana. Cristo é o verdadeiro levita, que comunica seu sacerdócio a toda a Igreja, particularmente aos presbíteros, os quais, por isso, devem viver como que consumidos por ele, devem amá-lo, imitá-lo, apresentar sua imagem aos fiéis, doar sua vida por ele. Se Cristo é o verus levites, o presbítero é também ele levita verus, empenhado numa luta impiedosa contra si mesmo e o espírito do mundo, para ser – como Cristo – totalmente de Deus.

É uma perspectiva totalizante: a intimidade eucarística, a humildade, a obediência ao bispo, a castidade perfeita, a oblação de si são expressões desse amor por Cristo que não admite concessões ou acomodações.

É uma perspectiva comunitária: a formação do presbítero tem um alento cósmico e está inserida no mistério da Igreja. Para Ambrósio, a vida espiritual é abertura às necessidades no mundo, não um ensimesmar-se: o sacerdote é o homem que vive para os outros, que não retém nada para si mesmo e, portanto, que se santifica não apenas para si mesmo, mas para o enriquecimento de toda a comunidade eclesial.

É uma perspectiva prática: Ambrósio não entende o presbítero como “uma criatura angelizada”, irreal, mas como um cristão de posse de sólidas virtudes humanas, segundo o modelo ciceroniano da moral antiga, elevada e cristianizada pela prática do Evangelho.

É, enfim, uma perspectiva dinâmica: o sacerdote deve santificar-se mediante o exercício zeloso dos munera que a Igreja lhe confiou por intermédio do bispo, ou seja, por meio da celebração da Eucaristia e da Palavra de Deus.

Tal como se consome por Cristo, o presbítero também se consome pelas almas: a solicitude pastoral absorve todo o seu tempo, todos os seus recursos físicos, intelectuais, espirituais e até econômicos, sem deixá-lo pensar demais nas próprias necessidades. As ocupações pastorais não se limitam apenas à esfera cultual e ritual, mas tornam a formação do presbítero comprometida com a prática constante da caridade, exigindo dele uma vida sóbria, pobre, desinteressada .



De nossa parte, poderíamos acrescentar uma reflexão complementar.

Com sua própria vida, Ambrósio esclarece da maneira mais clara as várias instâncias da formação e da missão do presbítero. Fica bem claro, por algumas passagens famosas das Confissões , o quanto esse testemunho foi decisivo para a conversão de Agostinho e, definitivamente, para sua formação como sacerdote e como pastor.

Recém-chegado a Milão – estamos no outono de 384 -, Agostinho, jovem professor de eloquência, vai visitar as várias autoridades da cidade, e encontra também o bispo Ambrósio. Nossa fonte diz que este o acolheu satis episcopaliter. É um advérbio um pouco misterioso: que pretendia dizer Agostinho com isso? Provavelmente, que Ambrósio o acolheu com a dignidade própria de um bispo, com paternidade, mas ao mesmo tempo com alguma distância.

O que é certo é que Agostinho ficou fascinado por Ambrósio; mas é certo também que um encontro tête-à-tête, tendo como tema aquilo que mais interessava a Agostinho, ou seja, os problemas fundamentais da busca da verdade, ia sendo adiado dia após dia. Tanto é, que houve quem afirmasse que Ambrósio era muito frio com Agostinho, e que pouco ou nada teve a ver com sua conversão.

No entanto, Ambrósio e Agostinho se encontraram várias vezes. Ambrósio, porém, mantinha a conversa em torno de generalidades, limitando-se, por exemplo, a tecer elogios a Mônica, e parabenizando o filho por semelhante mãe.

Quando Agostinho se dirigia especificamente a Ambrósio, normalmente o encontrava ocupado com bandos de pessoas cheias de problemas, por cujas necessidades o bispo se desdobrava. Quando não estava com elas (e isso era pouquíssimo frequente), ou o bispo restaurava seu corpo com o que lhe era necessário, ou alimentava o espírito com leituras.

Nesse ponto, Agostinho manifesta toda a sua surpresa, pois Ambrósio lia as Escrituras de boca fechada, apenas com os olhos. Nos primeiros séculos cristãos, a leitura era concebida estritamente para a finalidade da proclamação, e ler em voz alta facilitava a compreensão também por parte de quem lia: o fato de Ambrósio conseguir percorrer as páginas apenas com os olhos indica ao admirado Agostinho uma capacidade singular de conhecimento e compreensão das Escrituras.

Agostinho geralmente se sentava à parte, com discrição, e ficava a observar Ambrósio; depois, não ousando perturbá-lo, ia embora em silêncio. “O certo é que”, conclui Agostinho, “nenhum ensejo se me oferecia de indagar o que desejava saber de tão santo oráculo vosso, qual era o seu peito, senão quando lhe ouvia algumas breves palavras. Mas aquelas minhas ânsias devorantes precisavam de encontrá-lo muito desocupado, para com ele se abrirem largamente. Jamais assim o achavam” .

São palavras muito graves, a ponto de levar a duvidar da própria solicitude pastoral de Ambrósio e de sua real atenção às pessoas.

De minha parte, porém, estou convencido de que a postura de Ambrósio perante Agostinho era na verdade uma estratégia, que representa eficazmente a figura de Ambrósio enquanto pastor e formador.

Ambrósio, certamente, está a par da situação espiritual de Agostinho, ainda mais por gozar das confidências e da plena confiança de Mônica. Todavia, o bispo não considera oportuno travar com Agostinho uma discussão dialética, da qual até poderia sair perdendo...

Assim, o bispo suspende as palavras, deixa os fatos falarem e, por meio dessa atitude, defende o primado do “ser” sobre o “dizer” do pastor.

Que fatos são esses?

Em primeiro lugar, o testemunho de vida de Ambrósio, uma vida feita de oração e serviço aos pobres. Agostinho fica saudavelmente impressionado, pois Ambrósio se mostra homem de Deus e homem totalmente entregue ao serviço dos fiéis. A oração e a caridade, testemunhadas por esse formidável pastor, tomam o lugar das palavras e dos raciocínios humanos.

Outro fato que fala a Agostinho é o testemunho da Igreja milanesa. Uma Igreja fortalecida na fé, reunida como um só corpo nas santas assembleias de que Ambrósio é animador e mestre, graças, também, aos hinos que compõe; uma Igreja capaz de resistir às pretensões do imperador Valentiniano e de sua mãe, Justina, que nos primeiros dias de 386 tinham voltado a pretender confiscar uma igreja para as cerimônias dos arianos.

Na igreja que deveria ser confiscada, conta Agostinho, o povo devoto vigiava, pronto a morrer com seu bispo. “Nós mesmos”, e este testemunho das Confissões é precioso, pois assinala que alguma coisa ia-se movendo no íntimo de Agostinho, “ainda frios sem o calor do vosso espírito, nos comovíamos com a perturbação e consternação da cidade” .

Agostinho, enfim, mesmo não conseguindo dialogar como gostaria com o bispo Ambrósio, fica positivamente contagiado por sua vida, por seu espírito de oração, por sua caridade com o próximo e pelo fato de Ambrósio se manifestar homem de Igreja: Agostinho o vê engajado na animação das liturgias e reconhece seu projeto audacioso de edificar uma Igreja unida e madura.

Assim, Agostinho encontra no testemunho do bispo Ambrósio uma autêntica “escola de formação” e um modelo de sacerdote e de pastor .

J. Janssens faz em seguida um estimulante aprofundamento sobre um aspecto particular da pesquisa de G. Coppa, trabalhando sobre o tema da pudicícia, ou “comportamento condigno”, no De officiis [ministrorum] de Santo Ambrósio .

Partindo de uma comparação geral entre o De officiis de Cícero e o homônimo tratado ambrosiano, Janssens concentra sua análise no tema que enunciamos.

Tanto Cícero quanto Agostinho consideravam a pudicícia parte integrante da formação dos jovens, respectivamente dos cidadãos e dos clérigos. Segundo Janssens, o valor atribuído por Santo Ambrósio ao decoro externo deve ser relacionado a sua concepção do comportamento cristão, que para Ambrósio era caracterizado por verdade e simplicidade. O importante é ser homem verdadeiro e leal “por dentro”, e isso se traduz num comportamento decoroso e natural.

As regras propostas pelo bispo de Milão não se destinam à manutenção de uma aparência mundana, que teria por finalidade esconder a verdadeira realidade interior para enganar os outros: ao contrário, essas regras contribuem para iluminar plenamente as íntimas riquezas de cada pessoa. Além disso, se Ambrósio estabelece um certo tipo de comportamento para seus clérigos, assumindo as regras de conduta usadas no ambiente patrício dos tempos de Cícero, é preciso acrescentar, porém, que o bispo entende tais regras animadas por um espírito evangélico. É a alma, é o espírito que estabelece a natureza, a índole de uma regra de conduta.

O decoro de que trata Cícero, que inclui as virtudes fundamentais da prudência, da justiça, da fortaleza, da temperança, e a própria sophrosyne dos gregos, embora esteja na base do tratado ambrosiano, recebe da inspiração bíblica do santo bispo uma conotação espiritual toda particular, que faz da pudicícia um componente essencial na formação dos clérigos .

3. O estudo dos Padres na formação do presbítero
A recente instrução da Congregação para a Educação Católica sobre o estudo dos Padres da Igreja na formação sacerdotal (IPI) pretendeu responder de modo preciso ao segundo aspecto da questão em exame.

O documento – que traz a data de 10 de novembro de 1989, festa de São Leão Magno – foi apresentado na Sala de Imprensa Vaticana por dom José Saraiva Martins, então secretário da Congregação. O texto de seu discurso, assinado também pelo então prefeito, o cardeal William Baum, explica as solicitudes fundamentais que orientaram a redação da IPI, marcadamente a pesquisa das causas e do modo de corrigir o “interesse menor” pelos Padres que parece ter caracterizado o período pós-conciliar.

O documento alude às aporias de uma parte da teologia, tão inclinada às urgências do momento presente que perde de vista a relevância do recurso à tradição cristã. A instrução censura também uma abordagem aos Padres que – excessivamente confiante no método histórico-crítico e pouco atenta aos valores espirituais e doutrinais do magistério patrístico – acaba por revelar-se danosa, ou até hostil, à plena compreensão dos antigos escritores cristãos. Mas a mais grave responsabilidade é atribuída ao “clima cultural contemporâneo, dominado pelas ciências naturais, pela tecnologia e pelo pragmatismo, em que a cultura humanista arraigada no passado é cada vez mais marginalizada”; em muitos casos, “parece faltar hoje uma sensibilidade real aos valores da antiguidade cristã, como também um adequado conhecimento das línguas clássicas”.

Definitivamente, repercutem na patrística “as tensões entre o velho e o novo, entre abertura e fechamento, entre estabilidade e progresso, entre um mundo preponderantemente tecnológico e um mundo que continua a crer nos valores espirituais do humanismo cristão” .

A consequência de tudo isso é o altíssimo valor da aposta em jogo: o “interesse menor” pelos Padres poderia ser mesmo o sintoma de um acordo escuso entre a teologia atual e uma cultura diminuída pelo secularismo e pelo tecnologismo.

Assim, diante de um documento que atinge o cerne de um debate que se faz inevitável, a reação do teólogo e do pastor só pode ser de acolhida atenta e grata, como quando nos vemos diante de um presente que esperamos há muito tempo. E esse presente é ainda mais precioso, na medida em que não apenas gratifica generosamente seus destinatários, mas, ao mesmo tempo, compromete-os a “transmitir o talento recebido” – ou seja, a aprofundar a mensagem do magistério, a ler suas entrelinhas e, sobretudo, a torná-la operativa.

Dizemos sobretudo porque o peso do próprio documento está no seu fim, numa série de disposições conclusivas que em certos aspectos revolucionam o ensino da patrística.

Só para começar, tal ensino deverá entender-se, no ciclo teológico institucional, “no mínimo por três semestres, com duas aulas semanais” . De modo geral, para usar ainda as palavras de dom José Saraiva Martins, “são estabelecidas exigências claras tanto para os alunos quanto para os professores, de quem é exigido um curso de preparação específica, realizado em institutos patrísticos especializados. Nesse sentido, mencionamos de bom grado, mais uma vez, dois institutos fundados em Roma pelo sumo pontífice Paulo VI: o Pontifício Instituto Superior de Latinidade, da Pontifícia Universidade Salesiana, e o Instituto Patrístico ‘Augustinianum’, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense. Ambos vêm desenvolvendo há bastante tempo, em conformidade com seus fins, uma benemérita atividade científica e de formação, que tem contribuído para a exploração e a divulgação do pensamento patrístico, e poderá ajudar eficazmente os bispos e outros superiores eclesiásticos na aplicação fiel da presente Instrução” .

Sendo assim, a Universidade Salesiana e o Pontifício Instituto Superior de Latinidade não podiam eximir-se de uma contribuição original de estudo, voltado a favorecer a acolhida da IPI e de suas solicitações. Dessa convicção, nasceu um livro formado por uma miscelânea de comentários ao texto magisterial .

O livro é formado por oito contribuições, assinadas por igual número de professores da Faculdade de Teologia e do Instituto de Latinidade (Faculdade de Letras Cristãs e Clássicas) da Universidade Salesiana.

A obra se abre com uma reflexão de E. dal Covolo sobre a natureza dos estudos patrísticos e suas finalidades, comentando os números 49-52 da IPI. O autor, ao mesmo tempo em que identifica no documento “um passo decidido e respeitável no sentido do reconhecimento e na definição da autonomia disciplinar e metodológica das pesquisas patrísticas”, sugere argumentos complementares ao texto em exame, tendo por objetivo um diálogo mais articulado e abrangente com os cultores das antiguidades cristãs .

O artigo seguinte, de F. Bergamelli, que trata do método do estudo dos Padres, dá continuidade ao comentário referindo-se sobretudo aos números 53-56 da IPI, ampliando a análise, ainda, a outras menções à mesma questão feitas pelo documento. O autor abre mão, necessariamente, de uma discussão exaustiva sobre o estatuto epistemológico dos estudos patrísticos, mas oferece perspectivas e orientações fecundas para a ampliação e o aprofundamento da reflexão do magistério .

A mesma perspectiva analítico-complementar é assumida por O. Pasquato ao repassar a relação entre estudos patrísticos e disciplinas históricas, delineada na IPI sobretudo no número 60. Em sua primeira parte, essa contribuição dá uma visão sintética do papel geral das ciências históricas nas pesquisas patrísticas; a segunda parte, mais analítica, foca a contribuição peculiar de cada disciplina histórica para o estudo da patrologia .

Diferentemente dos três primeiros artigos, os capítulos seguintes parecem optar pelo caminho da reflexão “à margem” da IPI ou realizada “por ocasião” desta, sem se atrelar diretamente ao comentário ou à complementação de algum item específico do documento.

Dessa forma, a contribuição de A. Amato enfrenta uma problemática fundamental da instrução, que é a do serviço prestado mutuamente entre o estudo dos Padres e a teologia dogmática; daí aparece muito bem delineado o contexto global em que se deve inserir e ser compreendida a contribuição magisterial a respeito dessa problemática .

R. Iacoangeli adota a mesma linha metodológica, definindo a “humanitas” clássica como “praenuntia aurora” ao ensinamento dos Padres. Sua exposição é um apelo apaixonado – repleto de exemplos oportunos – ao estudo da cultura e das línguas clássicas, como condição indispensável para uma abordagem fecunda da mensagem patrística .

A discussão sobre a relevância dos estudos filológicos e literários continua no artigo seguinte, de S. Felici: este estudioso também reconhece na competência linguística e literária o instrumento “técnico” para decifrar os escritos dos Padres .

A. M. Triacca, por sua vez, considerando o uso dos “loci” patrísticos nos Documentos do Concílio Vaticano II, de um lado identifica a lectura Patrum como um auxílio insubstituível ao sentire cum Ecclesia, coerentemente com a disciplina encontrada na liturgia das horas; de outro lado, reconhece na própria liturgia uma formidável chave de compreensão e assimilação do pensamento e da espiritualidade dos Padres, seguindo uma preocupação acolhida e compartilhada pelo magistério conciliar .

M. Maritano, enfim, delineia a situação dos estudos patrísticos no século XIX, fornecendo-nos um precioso guia bibliográfico, que, mesmo concentrando-se preponderantemente no século retrasado, quando novas situações históricas e culturais favoreceram um redescobrimento da tradição patrística, se estende, na prática, até os nossos dias .

Assim, os dois últimos estudos encerram o volume dando um novo estímulo à pesquisa, ao mesmo tempo em que instam os estudiosos a valerem-se do magistério recente da ciência e da história.

Consideramos que essas oito contribuições podem fornecer, em seu conjunto, uma discreta radiografia de alguns dos aspectos mais significativos da IPI.

O livro, porém, não entra em questões relativas à gênese do documento. Sobre isso, dizemos simplesmente que seu tempo de “incubação” foi até longo, uma vez que – como dom José Saraiva Martins declarou aos jornalistas - “desde 1981 trabalhávamos na redação desta Instrução”. Não podemos deixar de lado a hipótese de que “o motivo imediato da apresentação da Instrução”, dado pela assembleia sinodal de setembro-outubro de 1990, tenha levado a abreviar o prazo para a redação definitiva do documento. Esse talvez seja um dos motivos pelos quais a “ampla consulta” inicial não foi seguida por uma revisão igualmente compartilhada na elaboração conclusiva da instrução.

Se quisermos sintetizar as perspectivas abertas pela IPI, precisaremos reconhecer em primeiro lugar que o documento parece claramente projetado para o futuro.

Sua insistência fundamental no sentido de um renovado incremento dos estudos patrísticos na formação sacerdotal talvez possa ser respondida mediante uma elaboração doutrinal mais completa e coerente; o raio de suas argumentações talvez possa estender-se para dimensões mais amplas e incisivas; enfim, o diálogo interdisciplinar pode se tornar mais aberto e abrangente.

Todavia, o estilo magisterial, fortemente orientado para as disposições conclusivas, confere à IPI um traço dinâmico característico.

Desse ponto de vista – acreditamos -, o próprio documento recomenda aos pastores e aos teólogos uma convergência na ação e uma coerência nas decisões, ao mesmo tempo em que deixa aberto o terreno para contribuições crítico-complementares de sua instrumentação teórica.

Essa é claramente a perspectiva em que se põe a obra que acabamos de apresentar .

Mas, à margem da IPI, temos uma outra contribuição respeitável, assinada pelo cardeal Pio Laghi, sucessor de W. Baum na direção da Congregação para a Educação Católica. Trata-se de uma conferência pronunciada por ele na Universidade Salesiana em 31 de outubro de 1991, em meio às manifestações científicas de “relançamento” da Corona Patrum, prestigiosa coleção de textos patrísticos de Turim .

É oportuno resumir aqui as passagens mais destacadas dessa conferência .

O cardeal Laghi afirma em primeiro lugar que a Instrução, ao mesmo tempo que encoraja e apoia os esforços de estudo e pesquisa no campo da patrística, olha também para além de suas fronteiras, perseguindo objetivos mais gerais. O documento se dirige não apenas aos patrólogos, mas a todos os teólogos, convidando-os a oferecer aos futuros presbíteros uma preparação cultural sadia e tão completa quanto possível; os estudos patrísticos, observa o cardeal Laghi, podem justamente oferecer aos sacerdotes uma ajuda valiosa para que realizem a síntese de seu saber teológico.

Dessa forma, a IPI convida os estudantes de teologia a se filiarem à escola dos Padres, uma escola que visa sempre o essencial. “Como diz Yves-Marie Congar, a tradição patrística ‘não é dissociante, mas, pelo contrário, leva à síntese, à harmonização. Não parte da periferia, isolando aqui e ali alguns textos, mas, ao contrário, trabalha de dentro para fora, ligando todos os textos ao centro e apresentando os pormenores de acordo com sua referência ao essencial’. A Tradição patrística ‘é, portanto, geradora de totalidade, de harmonia e de síntese. Tal tradição vive e leva a viver do sentido de conjunto do desígnio de Deus, a partir do qual é distribuída e compreendida a arquitetura daquilo a que Irineu chama sistema ou oikonomia’” .

Mas é óbvio que os estudantes de teologia não se deverão contentar com as simples indicações dos patrólogos para assimilar uma tal atitude ou hábito espiritual, mas deverão entrar numa familiaridade cada vez mais íntima com as obras patrísticas. Trilhando esse caminho, aprenderão a perceber mais facilmente o núcleo essencial da teologia cristã. A unidade do saber teológico – como de qualquer saber – é uma meta muito alta, que custa esforço e só pode ser obtida na consciência da verdadeira natureza e missão da própria teologia . Muito oportunamente, o número 16 da IPI transcreve uma célebre passagem da carta que Paulo VI escreveu ao cardeal M. Pellegrino em 1975, no centenário da morte de J.-P. Migne. Nela, lemos, entre outras coisas: “L’étude des Pères, d’une grande utilité pour tous, apparaît d’une impérieuse nécessité pour ceux qui ont à coeur le renouvellement théologique, pastoral et spirituel promu par le récent Concile, et qui veulent y coopérer” .

Mas há um outro motivo, prossegue o cardeal Laghi, pelo qual os Padres são mestres de formação sacerdotal. De fato, eles, que em grande parte eram bispos experientes e plenamente dedicados ao ministério, oferecem aos alunos ótimos exemplos e estímulos para sua preparação à missão de pastores. A dimensão pastoral, fortemente sublinhada pelo Vaticano II, é um componente de formação a que damos hoje grande importância, e que apaixona os candidatos ao sacerdócio. Muitas vezes, porém, esse entusiasmo se transforma em ativismo unilateral, empobrecido de motivações e de conteúdos teológicos, conflitando com o sublime ideal pastoral personificado pelos Padres da Igreja. Os mais conhecidos escritos patrísticos dedicados ao sacerdócio, como, por exemplo, o Diálogo sobre o sacerdócio de João Crisóstomo ou a Regra Pastoral de Gregório Magno, revelam o verdadeiro coração dos pastores, que, ao mesmo tempo em que se inclinam para todas as necessidades espirituais das almas, buscam elevá-las ao mais alto grau de perfeição evangélica, não negligenciando as dificuldades e as necessidades materiais em que se encontram.

Para escapar ao perigo de um achatamento horizontalista, o candidato ao sacerdócio e todo sacerdote devem aprender dos Padres como estar neste mundo e não ser deste mundo, como ser profundamente humanos e ao mesmo tempo sobrenaturais, verdadeiros homens de Igreja. Nessa concepção grandiosa do ministério pastoral estão incluídas as vivas preocupações dos Padres no que tange à unidade da Igreja (o que chamaríamos hoje de problema ecumênico), os esforços para a inserção do cristianismo no ambiente cultural greco-romano (o problema missionário da inculturação) e a incansável solicitude a aliviar a sorte dos oprimidos e dos pobres (o problema social).

Nas linhas pastorais acima indicadas, conclui o cardeal Laghi, transparece a teologia cristocêntrica dos Padres, que sustém e alimenta todo o seu ministério sagrado. Daí deriva um exemplo esclarecedor para a preparação dos futuros sacerdotes, que, para se tornarem bons pastores de almas, devem estabelecer como fundamento de todo o seu apostolado uma sã teologia e uma profunda vida espiritual .

De minha parte, considero que as solicitações da IPI por uma renovação dos estudos patrísticos na formação sacerdotal são numerosas e bem explicadas.

Nesse sentido, eu me contento com uma simples observação, suficiente para dar uma ideia da rápida mudança de perspectiva ocorrida nos últimos anos.

Ainda no início da década de 1950, o cardeal M. Pellegrino lamentava que as pesquisas de teologia patrística careciam “de uma adequada base filológica e de uma sólida estrutura histórica”, muitas vezes substituídas por “um mais cômodo esquematismo doutrinal”, “sugerido por desdobramentos do pensamento teológico” frequentemente estranhos à mentalidade dos Padres .

M. Pellegrino denunciava, assim, o “servilismo” da patrística perante a dogmática que caracterizava os currículos teológicos das décadas de 1950 e 1960. Normalmente, o estudo dos Padres não constituía uma disciplina autônoma nesses currículos. É verdade que era garantida uma exposição mais ou menos ampla das doutrinas patrísticas, mas isso sempre em rigorosa dependência dos tratados dogmáticos que estivessem em exame. Assim, muito raramente os escritores eclesiásticos podiam parecer ao estudante pessoas reais, inseridas num contexto histórico-cultural próprio. O risco evidente disso era um “achatamento” da reflexão teológica e uma absolutização indevida do modelo de teologia subjacente aos tratados dogmáticos: como a um “leito de Procusto”, a leitura dos Padres era adaptada a esse modelo .

Ante um contexto como esse, a IPI inaugura – como já dissemos – uma espécie de “revolução copernicana”, uma vez que a patrística, nesse documento, é contada entre as principais disciplinas do currículo da formação, disciplina que deve ser ensinada à parte, com método e matéria próprios, “durante pelo menos três semestres, com duas aulas semanais” .

4. Conclusões provisórias
É evidente que os documentos magisteriais apresentados – marcadamente a IPI e a PDV – consideram os Padres da Igreja mestres insubstituíveis na formação intelectual, espiritual e pastoral dos futuros presbíteros .

Creio, mais ainda, que é sobretudo aos ministros da Igreja que se devem referir as palavras com que Bento convidava os monges à leitura dos santos Padres, uma vez que seus ensinamentos – explicava – podem conduzir “ao cume da perfeição” .


CAPÍTULO II

A tradição antioquena: de Inácio a João Crisóstomo

1. Introdução

Neste e no próximo capítulos me proponho a apresentar alguns textos patrísticos relativos à formação sacerdotal.

Limito-me necessariamente a alguns exemplos, entre os muitos possíveis , referindo-me, neste capítulo, à “tradição antioquena” e, no próximo, à “tradição alexandrina”.

Tal opção visa pôr um pouco de ordem na exposição e, de outro lado, ajuda a superar a imagem de uma “teologia dos Padres” rígida e compacta como um monólito. De fato, a variedade das antigas “escolas” de Antioquia, de Alexandria, de Edessa, como também das respectivas raízes histórico-culturais, faz aparecer nos textos patrísticos posições e sensibilidades diferentes.

São bastante conhecidas as orientações das antigas tradições de Antioquia e Alexandria.

De um lado, Antioquia parece encarnar as características mais evidentes do chamado “materialismo” asiático, defensor da letra, na exegese, e da humanidade do Filho, na cristologia; por sua vez, Alexandria parece acolher as instâncias – respectivamente complementares – da alegoria, na exegese, e da divindade do Verbo, na cristologia .

2. Das Cartas de Inácio († 107)
Está muito disseminado o costume de considerar Luciano, mestre de Ário, como o fundador da “escola” de Antioquia.

Mas Inácio, já na primeira metade do século II, antecipa alguns de seus traços característicos, sobretudo no destacado realismo com que se refere à humanidade de Cristo. Cristo “é verdadeiramente da descendência de Davi”, escreve Inácio aos esmirniotas, “nascido verdadeiramente da virgem [...], realmente pregado por nós” .

Inácio emprega o mesmo realismo ao se referir à Igreja. Em particular, ele alude várias vezes à hierarquia eclesiástica, falando dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos .

“Convém caminhar de acordo com o pensamento de vosso bispo, como já o fazeis”, escreve aos efésios. “Vosso presbitério, de boa reputação e digno de Deus, está unido ao bispo, assim como as cordas à cítara. Por isso, no acordo de vossos sentimentos e na harmonia de vosso amor, vós podeis cantar a Jesus Cristo. A partir de cada um, que vos torneis um só coro, a fim de que, na harmonia de vosso acordo, tomando na unidade o tom de Deus, canteis a uma só voz.” Depois de ter recomendado aos esmirniotas que, “sem o bispo, ninguém faça nada do que diz respeito à Igreja” , confidencia a Policarpo: “Ofereço minha vida para os que se submetem ao bispo, aos presbíteros e aos diáconos. Possa eu, com eles, ter parte em Deus. Trabalhai uns com os outros e, unidos, combatei, lutai, sofrei, dormi, despertai, como administradores, assessores e servidores de Deus. Procurai agradar àquele sob cujas ordens militais e do qual recebeis vosso soldo. Não se encontre entre vós nenhum desertor. Que o vosso batismo seja como escudo, a fé como elmo, o amor como lança, a perseverança como armadura” .

Podemos perceber nas Cartas de Inácio uma espécie de dialética constante e fecunda entre dois aspectos característicos da experiência cristã: sem dúvida, a estrutura hierárquica da comunidade eclesial, de que já falamos, mas também a unidade fundamental que liga todos os fiéis em Cristo entre si.

Como consequência, não existe a possibilidade de uma oposição de papéis . Ao contrário, a insistência na comunhão e na reciprocidade dos crentes, continuamente reformulada mediante imagens e analogias (a cítara, as cordas, o tom, a harmonia...), surge como a nota consciente da identidade comum dos fiéis, prescindindo do fato de serem estes ministros ordenados ou não.

Por outro lado, fica evidente a responsabilidade dos diáconos, dos presbíteros e dos bispos na edificação da comunidade .

Vale para eles, em primeiro lugar, o convite ao amor e à unidade. “Reunidos em comum”, escreve Inácio aos magnésios, retomando a oração de Jesus na última ceia: “Haja uma só oração, uma só súplica, um só espírito, uma só esperança no amor [...]. Correi todos juntos como ao único templo de Deus, ao redor do único altar, em torno do único Jesus Cristo, que saiu do único Pai e que era único em si e para ele voltou” .

Inácio não explicita as exigências de formação relativas aos ministros sagrados. Mas nem por isso estas são menos evidentes. Vejamos, por exemplo, a passagem da Carta aos tralianos em que o bispo, compilando os ensinamentos de At 6 (a ordenação dos primeiros diáconos), explica com franqueza: “É preciso, também, que os diáconos, ministros dos mistérios de Jesus Cristo, agradem a todos e de todos os modos. Com efeito, não é [simplesmente] de comida e bebida que eles são ministros, e sim servidores [huperétai: literalmente, “remadores”] da Igreja de Deus. É preciso, portanto, que eles evitem qualquer tipo de repreensão, como se evita o fogo” .

É útil confrontar essa passagem de Inácio com a identikit do diácono que aparece no relato dos Atos.

Os diáconos, diz o livro bíblico, são homens “de boa reputação”, ou melhor, “pessoas de testemunho comprovado” (martyrouménoi: At 6,3). Como podemos ver, a palavra usada está ligada ao termo “mártir”. Poderíamos dizer que o diácono deve, de certa forma, ser um “mártir”, no sentido de que o testemunho de sua diaconia não pode nunca recuar, ao custo – se necessário – da própria vida. Nesse sentido, Inácio diz que os diáconos são servos da Igreja e de Deus.

Em segundo lugar, para permanecer nos Atos, o diácono deve ser “repleto do Espírito e de sabedoria” (6,3). Trata-se de uma sabedoria que vem de Deus: é a “sabedoria do Espírito”, que pede profunda intimidade com o Senhor. Portanto, o serviço da caridade – o chamado “serviço das mesas”, a que os diáconos se destinam – pressupõe sempre, em sua vida, o primado da dimensão espiritual.

Voltando às palavras de Inácio, os diáconos não são simples distribuidores de alimentos e bebidas, mas estão a serviço dos mistérios de Jesus Cristo. Se um ministro não se forma na contemplação dos santos mistérios de Cristo, até alcançar “a unidade” com ele, não pode exercer o ministério autêntico da caridade e não “faz progredir” a Igreja de Deus.


3. João Crisóstomo († 407)
Passo agora a um outro Padre antioqueno, misticamente apaixonado pelo sacerdócio.

Antes de qualquer outra consideração, gostaria de apresentar o pastor em ação, em pleno exercício de seu ministério.

Refiro-me às célebres Homilias sobre Mateus e à maneira como Crisóstomo encarava pastoralmente problemas muito sérios, como o da riqueza e da pobreza na comunidade cristã de Antioquia.

As homilias de Crisóstomo (aprox. 350-407) Sobre o evangelho de Mateus constituem para nós o mais antigo comentário completo ao primeiro evangelho. Representam, ainda, um testemunho significativo dessa atividade homilética que asseguraria a Crisóstomo o mais alto reconhecimento entre os oradores eclesiásticos. Tais homilias remontam aos anos entre 386 e 397 – entre a ordenação sacerdotal, em Antioquia, e a eleição à cátedra patriarcal de Constantinopla -, período em que Crisóstomo foi chamado a desempenhar diversas vezes o cargo de pregador nas mais importantes igrejas antioquenas. Esse encargo era particularmente adequado à índole de João, que, depois de uma experiência monástica e eremítica, tinha abraçado o sacerdócio em resposta a uma irresistível vocação pastoral , visando, especialmente por meio da pregação das Escrituras, realizar essa vocação. Coerentemente, sua pregação e sua exegese – fiéis às indicações fundamentais da “escola antioquena” – parecem especialmente sensíveis às condições concretas, aos problemas e às necessidades, também materiais, dos destinatários.

Em particular – na Antioquia da segunda metade do século IV, em que eram enormes as desigualdades sociais e econômicas, em razão da guerra, do latifundismo, do capitalismo, do regime fiscal iníquo... -, Crisóstomo é estimulado constantemente a tratar dos múltiplos problemas decorrentes da convivência de ricos e pobres no seio da comunidade . Basta pensar que, só nas homilias Sobre o evangelho de Mateus, esse tema aparece não menos de cem vezes!

Mas queremos ouvir “o pastor em ação”, lendo passagens de sua quinquagésima homilia Sobre o evangelho de Mateus .

Em seu conjunto, a homilia comenta a perícope conclusiva de Mt 14: mas o último versículo do capítulo – em que lemos que os habitantes de Genesaré levaram a Jesus seus doentes, “rogando-lhe tão somente tocar a orla da sua veste” (Mt 14,36) – permite a Crisóstomo uma amplificação parenética substancialmente autônoma, que ocupa, sozinha, toda a segunda metade da homilia.

A amplificação se justifica pelo contexto da liturgia eucarística, em que se insere a homilia: “Toquemos nós também a orla de seu manto”, convida Crisóstomo; “aliás, se quisermos, temos o Cristo todo inteiro. De fato, seu corpo está agora, aqui, diante de nós”. E prossegue: “Crede que também agora encontra-se aqui aquela mesa, à qual Jesus se sentou” .

Segundo Crisóstomo, essa certeza de fé interpela de modo decisivo a responsabilidade dos fiéis, uma vez que a participação da missa do Senhor não permite incoerências de nenhuma espécie: “Que nenhum Judas se aproxime da mesa!”, exclama o homiliasta. E não é critério suficiente de dignidade o fato de alguém se apresentar à mesa com vasos de ouro: “Não era de prata aquela mesa, nem de ouro o cálice com o qual Cristo deu seu sangue aos discípulos. [...] Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que ele esteja nu: e não o honres aqui, na igreja, com tecidos de seda, para depois tolerar, fora daqui, que ele morra de frio e nudez. Aquele que disse: ‘Isto é o meu corpo’, disse também: ‘Tive fome e não me destes de comer’; e: ‘O que deixastes de fazer a um destes pequeninos, o deixastes de fazer a mim’. Aprendamos, portanto, a ser sábios, e a honrar o Cristo como ele quer, gastando as riquezas pelos pobres. Deus não precisa de cabedais de ouro, mas de almas de ouro. Que vantagem há em que sua mesa esteja cheia de cálices de ouro, quando ele mesmo morre de fome? Primeiro ele mesmo, o faminto, se sacia, e então, com o supérfluo, ornarás sua mesa!”

As expressões citadas são suficientes para demonstrar a plena identificação de Cristo com o indigente. Crisóstomo tem plena consciência de que, antes de qualquer outra explicação, vale a declaração de princípio: quem serve ao pobre serve a Cristo, quem rejeita ao pobre rejeita a Cristo. É sobre isso que seremos julgados (Mt 25,31-46). Mas Crisóstomo tem consciência, igualmente, de que esse amor pelo próximo – para ser realmente o amor de Jesus – deve alimentar-se da comunhão com Deus, de seu amor por nós.

Em sua pregação, o bispo sublinha insistentemente a relação íntima que existe entre o mandamento do amor e a vida de Deus. A autêntica testemunha da caridade deve poder dizer, com o apóstolo João: “O que vimos e ouvimos, o Verbo da vida, nós vo-lo anunciamos” (1Jo 1,1.3).

Em outros termos, para crescer na caridade autêntica, os fiéis, e com maior razão os ministros ordenados, devem conhecer Jesus, entrar em profunda intimidade com ele .

Mais uma vez, o discurso volta à “dimensão contemplativa” do presbítero e à qualidade de seu encontro com o Senhor na Palavra e nos sacramentos.

Nessa mesma perspectiva pode ser lido também o famoso Diálogo com Basílio, composto por volta de 389 , sobretudo a passagem em que João Crisóstomo fala do “exemplo” e da “palavra” como remédios à disposição do presbítero: “Aqueles que curam os corpos dos homens têm à disposição vários remédios. [...] Em nosso caso, além do exemplo, não temos outro instrumento ou método de cura além do ensinamento que damos pelo uso da palavra” .

No mesmo Diálogo, Crisóstomo fala do sacerdócio como “uma vida feita de coragem e dedicação”, pois o ministério do (verdadeiro) pastor não conhece as fronteiras estreitas do interesse pessoal, mas redunda em vantagem de todo o rebanho .

Para Crisóstomo, o cuidado com o rebanho é o “sinal do amor”, é a prova concreta de que o ministro ama realmente o Senhor: “Se me amas, apascenta as minhas ovelhas...”

Nessa ocasião, observa Crisóstomo, o mestre perguntou ao discípulo se o amava não para que pudesse ele mesmo sabê-lo: por que precisaria fazer isso, ele, que perscruta e conhece o coração de todos? Nem tampouco “pretendia demonstrar-nos o quanto Pedro o amava: isso muitos entre nós já o sabiam. O que queria demonstrar era o quanto ele [o Senhor] amava a sua Igreja, e ensinar a Pedro e a todos nós quanto cuidado deveríamos dedicar a essa obra” .

Reside precisamente aqui a diferença abissal entre o “mercenário” e o “pastor”: “O bom pastor dá sua vida pelas suas ovelhas” (Jo 10,11).
4. Conclusões provisórias
Parece-nos que tanto Inácio quanto João insistem mais na identidade e na missão do presbítero que no itinerário de sua formação. Na maior parte dos casos, de fato, as exigências de formação ficam apenas implícitas.

Seja como for, em ambos os Padres pudemos verificar um forte destaque dado à necessária unidade do presbítero com Cristo.

Para os dois antioquenos, além disso, a unidade perfeita com Cristo e a dedicação total ao rebanho não parecem simplesmente duas características constitutivas do presbítero (que, por conseguinte, orientarão sempre qualquer itinerário de formação sacerdotal). Constituem, antes, uma única realidade. São como duas faces da mesma moeda. Uma inversa à outra; e nunca deveria dar-se o caso de um sacerdote ter uma sem a outra. Para o presbítero, a dedicação total ao rebanho é o sinal de sua unidade com Cristo; por outro lado, a dedicação plena ao rebanho o compromete “a acorrer” continuamente “a Jesus Cristo, como ao único templo de Deus, como ao único altar”.

Em última análise, o “realismo” dos Padres antioquenos convida o presbítero a uma síntese progressiva entre configuração a Cristo (intimidade, união com ele) e dedicação pastoral (missão, serviço à Igreja e ao mundo), até que, por meio de uma dimensão, fale a outra, e os ministros não se reduzam nunca a “simples distribuidores”, mas sejam “autênticas testemunhas” dos mistérios de Cristo e de sua Igreja.


CAPÍTULO III

A tradição alexandrina: Orígenes

1. Introdução
Continuamos a apresentar e comentar alguns textos patrísticos relativos à formação sacerdotal. Passo agora à chamada “tradição alexandrina”.

Alexandria – como já dissemos – parece acolher duas preocupações complementares às da tradição antioquena, a saber: a alegoria, na exegese, e a valorização da divindade do Verbo, na cristologia. De modo geral, Alexandria está bem distante do chamado “materialismo” asiático de que falávamos no capítulo II; isso também parece evidente no âmbito eclesiológico e, em particular, na concepção do ministério ordenado .

Para explicar as orientações alexandrinas a respeito do tema da formação sacerdotal, limito-me a um só exemplo, mas representativo ao máximo: refiro-me a Orígenes, sobretudo a suas Homilias sobre o Levítico, pronunciadas em Cesareia da Palestina entre 239 e 242. Encontramo-nos alguns anos depois da grave crise que, em razão de sua ordenação sacerdotal, que lhe foi conferida por volta de 231 pelos bispos de Cesareia e de Jerusalém, sem a ciência do bispo de Alexandria, opôs Orígenes a seu superior Demétrio. Foi justamente essa crise, não solucionada, que provocou a transferência de Orígenes para Cesareia.

Ambrósio, bispo de Milão († 397), foi o herdeiro da tradição alexandrina no Ocidente – sobretudo no âmbito exegético . Mas já falamos de Ambrósio e de Agostinho, seu “discípulo”, no primeiro capítulo. Seja como for, para complementar a discussão, recomendo a já citada conferência do padre Janssens sobre a pudicícia (ou “comportamento condigno”) dos clérigos no tratado ambrosiano De officiis [ministrorum] .


2. Orígenes († 254)
A primeira coisa que precisamos reconhecer é que Orígenes, como bom alexandrino, está mais interessado em contemplar o aspecto espiritual da Igreja, como Corpo místico de Cristo, que seu aspecto visível.

Assim, Orígenes está mais atento à chamada “hierarquia da santidade”, relacionada a um caminho incessante de perfeição proposto a todo cristão, que à “hierarquia visível”.

Por conseguinte, o alexandrino se refere com maior frequência ao sacerdócio comum dos fiéis e a suas características que ao sacerdócio hierárquico .

Em todo caso, acompanhando o discurso de Orígenes sobre um e outro assunto, não será difícil extrair algumas indicações sobre o itinerário de formação dos presbíteros.

 
2.1. O sacerdócio dos fiéis e as condições para seu exercício
Uma ampla série de textos origenianos tem a pretensão de ilustrar as condições exigidas para o exercício do sacerdócio comum.

Na nona Homilia sobre o Levítico, Orígenes – referindo-se à prescrição feita a Aarão, depois da morte de seus dois filhos, de que não entre no sancta sanctorum “em momento algum” (Lv 16,2) – admoesta: “Isto demonstra que, se uma pessoa entra a qualquer hora no santuário, sem a devida preparação, não revestido da indumentária pontifical, sem ter preparado as ofertas prescritas e sem ter-se tornado propício a Deus, morrerá [...]. Isso diz respeito a todos nós: o que aqui diz a Lei refere-se a todos. Afinal, a Lei ordena que saibamos como ter acesso ao altar de Deus. Ou será que não sabes que também a ti, ou seja, a toda a Igreja de Deus e ao povo dos que creem, foi conferido o sacerdócio? Ouve como Pedro fala dos fiéis: ‘Raça eleita’, diz, ‘um sacerdócio real, uma nação santa, o povo que Ele conquistou’. Portanto, deves oferecer a Deus o sacrifício de louvor, o sacrifício de oração, o sacrifício de misericórdia, o sacrifício de pureza, o sacrifício de justiça, o sacrifício de santidade. Mas, para que possas oferecer dignamente essas coisas, precisas de indumentária pura e distinta da indumentária comum dos outros homens, e precisas também do fogo divino – não um fogo estranho a Deus, mas aquele que é dado aos homens por Deus -, esse fogo de que o Filho de Deus diz: ‘Eu vim para trazer fogo à terra’” .

Na quarta Homilia, tomando como deixa a legislação levítica segundo a qual o fogo para o holocausto deveria arder perenemente sobre o altar (Lv 6,8-13), Orígenes apostrofa assim a seus fiéis: “Ouve: deve sempre haver fogo no altar. E tu, se queres ser sacerdote de Deus – como está escrito: ‘Vós todos sereis sacerdotes do Senhor’, e é dito a ti: ‘Raça eleita, um sacerdócio real, o povo que Ele conquistou’ -, se queres exercer o sacerdócio de tua alma, não deixes nunca que o fogo se aparte de teu altar” .

Como vemos, o alexandrino alude às condições interiores que tornam o fiel mais digno ou menos digno de exercer seu sacerdócio. Assim prossegue a mesma Homilia: “O significado disso é o que o Senhor ordena nos evangelhos: ‘tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas’. Portanto, que o fogo da fé e a lâmpada da ciência estejam sempre acesos para ti” .

De um lado, portanto, os “rins cingidos” e a “indumentária sacerdotal”, ou seja, a pureza e a honestidade de vida; de outro, a “lâmpada sempre acesa”, ou seja, a fé e a ciência das Escrituras: essas se configuram precisamente como as condições indispensáveis para o exercício do sacerdócio comum.

Com maior razão, evidentemente, são também as condições para o exercício do sacerdócio ministerial. Poderíamos dizer, aliás, que no pensamento origeniano estas constituem as “pedras miliares” da formação presbiteral. Mas voltaremos a esse tema nas conclusões.


2.2. Sacerdócio dos fiéis e acolhida da palavra
Mais que nos “rins cingidos”, Orígenes insiste na “lâmpada acesa”, ou seja, a acolhida e o estudo da palavra de Deus.

“Jericó desmorona sob as trombetas dos sacerdotes”, começa o alexandrino, na sétima Homilia sobre Josué; e comenta, pouco adiante: “Tens para ti Josué [= Jesus] como guia graças à fé. Se és sacerdote, constrói para ti ‘trombetas metálicas’ [tubae ductiles]; ou melhor, uma vez que és sacerdote – e assim és ‘estirpe real’, e de ti é dito que és ‘sacerdócio santo’ -, constrói para ti ‘trombetas metálicas’ com as sagradas escrituras, extrai [duc] daí os verdadeiros significados, tira daí os teus discursos; é justamente por isso que se chamam tubae ductiles. Nelas canta, ou seja, canta com salmos, hinos e cânticos espirituais, canta com os símbolos dos profetas, com os mistérios da lei, com a doutrina dos apóstolos” .

Segundo a terceira Homilia sobre o Gênesis, o “povo que Deus conquistou” deve acolher em seus ouvidos a digna circuncisão da palavra de Deus: “Vós, povo de Deus”, afirma Orígenes, “‘povo conquistado para narrar as virtudes do Senhor’, acolhei a digna circuncisão do verbo de Deus em vossos ouvidos e em vossos lábios e no coração e no prepúcio de vossa carne, e em geral em todos os vossos membros” .

“Tu, povo de Deus”, acrescenta ainda Orígenes em outro contexto, “és convocado a ouvir a palavra de Deus, e não como plebs, mas como rex. A ti, de fato, é dito: ‘Raça eleita e sacerdotal, povo que Deus escolheu’” .

A acolhida das Escrituras é decisiva para uma plena participação da “estirpe sacerdotal”. Interpretando alegoricamente Ez 17, Orígenes explica a seus fiéis duas possibilidades contrapostas: a aliança com Nabucodonosor – marcada pela maldição e pelo exílio -, característica de quem recusa a palavra, e a aliança com Deus, cujo documento definitivo é precisamente a acolhida das Escrituras. A essa aliança segue-se a bênção e a promessa: assim “nós todos, que acolhemos a palavra de Deus, somos regium semen”, declara Orígenes na décima segunda Homilia sobre Ezequiel. “Somos chamados ‘raça eleita e sacerdócio real, nação santa, povo que Ele conquistou’” .


2.3. Sacerdócio dos fiéis e “hierarquia da santidade”
Essas condições – de conduta de vida íntegra, mas sobretudo de acolhida e de estudo da palavra – estabelecem uma verdadeira “hierarquia da santidade” no sacerdócio cristão comum.

Orígenes, por exemplo, claramente está pensando numa “hierarquia de méritos espirituais”, muito mais que numa “hierarquia visível”, quando, ao concluir na quarta Homilia sobre os Números a explicação do recenseamento e dos ofícios litúrgicos dos levitas (Nm 4), afirma: “Uma vez, portanto, que é essa a maneira como Deus dispensa seus mistérios e regula o serviço dos objetos sagrados, devemo-nos mostrar de forma a nos tornar dignos do grau sacerdotal [...]. Nós somos ‘nação santa, sacerdócio real, povo conquistado’, para que, respondendo com os méritos de nossa vida à graça que recebemos, sejamos considerados dignos do santo ministério” .

Na Homilia seguinte, a quinta sobre os Números, aventurando-se numa leitura ousada do texto (Nm 4,7-9), Orígenes interpreta de modo alegórico os vários elementos que constituem a “tenda da reunião”. Podemos perceber aqui, ainda, uma certa alusão à “hierarquia da santidade”, quando o homiliasta afirma que “há nessa tenda”, na Igreja do Deus vivo, “personagens mais elevados em mérito e superiores em graça”. Em todo caso, todos os fiéis, em seu conjunto, constituem o “resto”, o povo dos santos que os anjos carregam sobre suas mãos para que seu pé não tropece nas pedras, e possam entrar no lugar da promessa. Não obstante as severas precauções levíticas, a cada um dos membros desse povo é lícito contemplar sem sacrilégio alguns dos aspectos do mistério de Deus, pois todos juntos são chamados “raça eleita e sacerdócio real, nação santa, povo que Ele conquistou” .

Ainda nas Homilias sobre os Números, lemos a célebre interpretação origeniana do poço de Beer, onde “o Senhor disse a Moisés: ‘Reúne o povo, e eu lhe darei água’. Então Israel cantou este cântico: ‘Jorra o poço: entoai-lhe cânticos! O poço cavado pelos príncipes, que foi perfurado pelos chefes do povo, com o cetro, com seus bastões’” (Nm 21,16-18). Orígenes vê nesse poço o próprio Jesus Cristo, a fonte da palavra, e, na menção aos príncipes e aos reis do povo, os diversos graus de profundidade na leitura e na interpretação das Escrituras. Se é preciso, ainda, distinguir entre príncipes e reis, Orígenes propõe ver nos príncipes os profetas, nos reis os apóstolos. “Quanto ao fato de que os apóstolos possam ser chamados reis”, explica o alexandrino, “isso pode ser facilmente deduzido do que é dito de todos os crentes: ‘Vós sois a estirpe real, o sumo sacerdócio, a nação santa’” .

Fica confirmado, em todo caso, que para Orígenes a hierarquia mais verdadeira é a que se baseia nos vários níveis de acolhida das Escrituras, ao mesmo tempo em que permanece implícito – ao menos na última Homilia citada – que a referência à palavra de Deus é indispensável para o exercício do “sacerdócio real” comum a todos os fiéis.

2.4. A “hierarquia ministerial”
Em suas homilias, Orígenes refere-se expressamente aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos. Em sua opinião, essa “hierarquia visível” deve representar aos olhos dos fiéis a “hierarquia invisível” da santidade. Em outros termos, na doutrina de Orígenes ordenação ministerial e santidade devem proceder pari passu.

“Os sacerdotes”, escreve na mesma Homilia sobre o Levítico, “devem mirar-se nos preceitos da lei divina com num espelho, e extrair desse exame o grau de seu mérito: se se encontram revestidos da indumentária pontifical [...], se lhes parece estar à altura [de sua vocação] na ciência, nos atos, na doutrina. Se assim for, podem considerar ter obtido o sumo sacerdócio não só nominalmente, mas também por seu mérito efetivo. Sendo o contrário, considerem-se como num grau inferior, ainda que tenham recebido nominalmente o primeiro grau” .

Como vemos, uma elevadíssima estima pelo sacerdócio ordenado torna Orígenes muito exigente, quase radical, perante os ministros sagrados. Por isso, ele alerta a qualquer um que não se precipite “nas dignidades, que vêm de Deus, e nas presidências e nos ministérios da Igreja” . Na segunda Homilia sobre os Números, pergunta cheio de dor: “Acreditas que aqueles que têm o título de sacerdotes, que se gloriam de pertencer à ordem sacerdotal, caminham segundo sua ordem, e fazem tudo o que convém a sua ordem? Da mesma forma, acreditas que os diáconos caminham segundo a ordem de seu ministério? De onde vem, então, que ouçamos frequentemente as pessoas se lamentarem, dizendo: ‘Vê só esse bispo, esse padre, esse diácono...’? Será que não dizem isso porque veem o padre ou o ministro de Deus faltar aos deveres de sua ordem?”

Assim, em suas homilias, Orígenes não hesita em reprovar abertamente os defeitos mais visíveis dos sacerdotes de seu tempo. Desses textos se destaca para nós um retrato eficaz “em negativo” dos perigos que devem ser evitados na formação dos presbíteros.

Na opinião de Orígenes, um ponto fraco dos padres é a sede pelo dinheiro e por ganhos temporais; ou – como diríamos nós -, a tentação do aburguesamento e do horizontalismo exasperado. Ele lamenta que os padres se deixem absorver pelas preocupações profanas, e não peçam outra coisa além de passar a vida presente “pensando nos afazeres do mundo, nos ganhos temporais e na boa comida” . E acrescenta, em outro contexto: “Entre nós, eclesiásticos, encontraremos quem faça de tudo para satisfazer seu ventre, para ser honrado e para receber em seu proveito as ofertas destinadas à Igreja. Eis aqueles que não falam de outra coisa senão do ventre, e que extraem daí todas as suas palavras...”

Orígenes reprova aos sacerdotes também a arrogância e a soberba. “Às vezes”, observa na segunda Homilia sobre o livro dos Juízes, “encontram-se entre nós – que somos postos como exemplo de humildade e, em torno do altar do Senhor, como espelho para aqueles que olham para nós -, encontram-se entre nós alguns homens dos quais exala o vício da arrogância. Assim, um odor repugnante de orgulho se espalha do altar do Senhor” . E prossegue em outro texto: “Quantos padres ordenados esqueceram a humildade! Como se tivessem sido ordenados justamente para deixar de ser humildes! [...] Estabeleceram-te como chefe: não exaltes a ti mesmo, mas sê entre os teus como um deles. É preciso que sejas humilde, é preciso que te humilhes; é preciso fugir da soberba, o maior de todos os males” .

Outros pecados dos padres são, segundo Orígenes, o desprezo – ou ao menos uma menor consideração – pelos humildes e pelos pobres e, na relação com os fiéis, uma espécie de “gangorra” entre uma excessiva severidade e uma não menos excessiva indulgência.


3. Conclusões provisórias
Se reunirmos as indicações que Orígenes nos dá sobre o sacerdócio comum e o hierárquico, poderemos extrair o seguinte itinerário de formação presbiteral.

A “chave” para ter acesso a esse itinerário é a “lâmpada acesa”, ou seja, a escuta da palavra. Outra condição indispensável são “os rins cingidos” e a “indumentária sacerdotal”, ou seja, uma vida íntegra e pura: nesse sentido, os ministros ordenados deverão guardar-se sobretudo das tentações do aburguesamento, da soberba, da menor consideração pelos pobres, da severidade excessiva e do laxismo. O que é pedido aos sacerdotes é, portanto, a obediência radical ao Senhor e a sua palavra, o afastamento do espírito do mundo, a fraternidade plena com o povo. O ponto mais alto do caminho de perfeição – ou seja, o ponto de chegada do itinerário de formação sacerdotal, visto que “hierarquia da santidade” e “hierarquia ministerial” devem-se identificar – é, para Orígenes, o martírio.

Na nona Homilia sobre o Levítico – aludindo ao “fogo para o holocausto”, ou seja, à fé e à ciência das Escrituras, que nunca deve apagar-se no altar de quem exerce o sacerdócio - o alexandrino acrescenta: “Mas cada um de nós tem em si” não apenas o fogo; tem “também o holocausto, e por seu holocausto acende o altar, para que arda sempre. Se renuncio a tudo o que possuo e tomo a minha cruz e sigo a Cristo, ofereço meu holocausto no altar de Deus; e, se entregar meu corpo para que arda, tendo a caridade, e conseguir a glória do martírio, ofereço meu holocausto sobre o altar de Deus” .

São expressões que revelam toda a nostalgia de Orígenes ante o batismo de sangue. Na sétima Homilia sobre os Juízes – que talvez remonte aos anos de Filipe, o Árabe (244-249), quando já parecia afastada a eventualidade de um testemunho cruento -, Orígenes exclama: “Se Deus me concedesse ser lavado em meu próprio sangue, de modo a receber o segundo batismo tendo aceito a morte por Cristo, eu me afastaria seguro deste mundo [...]. Mas são felizes aqueles que merecem essas coisas” .


Concluo com uma observação geral sobre o itinerário origeniano de formação sacerdotal.

Não podemos escapar à impressão de que nesse, como em outros temas, a posição de Orígenes seja muito exigente, quando não radical.

Em todo caso, sua reflexão sobre o sacerdócio (como também a de outros mestres alexandrinos, como Clemente Alexandrino, por exemplo ), mesmo conectando firmemente a “hierarquia ministerial” à “hierarquia da perfeição”, jamais apresenta o padre como uma espécie de anjo: ao contrário, percebe-o num caminho muito concreto de ascese cotidiana, em luta contra o pecado e o mal.

Só para dar um exemplo, para Orígenes o afastamento progressivo do mundo que deve caracterizar a formação do sacerdote não se traduz de modo algum na busca ansiosa por um lugar separado do mundo, pois, como escreve na décima segunda Homilia sobre o Levítico, “não é em algum lugar que deves buscar o santuário, mas nos atos, na vida e nos costumes. Se estes estão de acordo com Deus, se se conformam aos mandamentos de Deus, pouco importa que estejas em casa ou em praça pública. ‘Em praça pública’? Pouco importa, até mesmo, que te encontres no teatro: se estás servindo ao Verbo de Deus, estás no santuário, não tenhas dúvida alguma” .

Definitivamente, a tradição alexandrina enriquece em concretude – por um caminho talvez inesperado – a imagem do pastor delineada por Inácio de Antioquia e João Crisóstomo.


CAPÍTULO IV
Perspectivas de síntese: a formação do presbítero nos primeiros séculos da Igreja

Nos capítulos anteriores – depois de uma ampla introdução metodológica e bibliográfica -, tomamos em exame alguns textos relativos à formação sacerdotal, tomando como referência a “tradição antioquena” (de Inácio a João Crisóstomo) e a “tradição alexandrina” (sobretudo Orígenes).

Neste capítulo conclusivo, gostaríamos de resumir num quadro histórico sistemático – das origens até o século V – as leituras e as reflexões até aqui desenvolvidas. Assim, as referências ao tema específico da formação sacerdotal nos Padres correrão pari passu com o discurso histórico sobre as origens e o desenvolvimento dos ministérios hierárquicos na Igreja .


1. Antes do Concílio de Niceia (325)
Os testemunhos pré-nicenos sobre os ministérios ordenados correspondem a duas exigências complementares entre si: de um lado, a fidelidade aos escritos neotestamentários e a continuidade com a experiência das primeiras comunidades cristãs ; de outro lado, a adaptação às novas situações internas e externas da Igreja.

Como veremos, as duas exigências convergem rumo a Niceia, numa hierarquização progressiva do sacerdócio ministerial.

No período mais antigo, que vai do final do século I às últimas décadas do II, prevalece um forte sentimento de unidade da Igreja e de pertencer comum dos cristãos à “raça eleita”, ao “sacerdócio real”, à “nação santa”, “ao povo que Ele conquistou”. Por isso, textos antigos e venerandos como a Didaqué, a Carta aos Coríntios de Clemente Romano e as Cartas de Inácio elaboram as indicações neotestamentárias sobre os ministérios ordenados sem se preocupar tanto com a distinção interna de papéis, quanto, em vez disso, com a nova identidade comum a todos os fiéis.

Já no período seguinte, ou seja, entre o final do século II e as últimas décadas do III, a situação se transforma. Muda sobretudo o panorama político, graças ao qual, na tolerância que se segue às primeiras perseguições violentas, a Igreja goza de um período de relativa calma e tranquilidade, que lhe permite consolidar sua estrutura interna. Nesse quadro histórico, o “sacerdócio ordenado” se faz cada vez mais marcadamente “hierárquico”, e se define a distinção sociológica entre clérigos e leigos. Esse fenômeno recupera um sentido preciso assumido pelo termo leikós na história e numa série de testemunhos – expressos sobretudo por Clemente de Alexandria, por Orígenes e por Cipriano – que chegam a opor as realidades do clero e do laicato, às vezes até de um modo pejorativo para a condição laical . Nem por isso se enfraquece na Igreja a consciência de que os ministérios ordenados também provêm do laicato, e de que o sacerdócio dos fiéis continua a ser a característica distintiva comum do novo povo de Deus.

Na passagem do primeiro para o segundo período, adquire particular relevância a era dos imperadores Severos (193-235). A análise historiográfica permite afirmar que algumas características da chamada “virada constantiniana” foram antecipadas – é difícil precisar em que medida – pela tolerância da dinastia severiana. Nesse contexto histórico-institucional, os bispos de Roma – marcadamente Vítor, Zeferino e Calixto – perceberam lucidamente a exigência de fortalecer a organização da comunidade. Seu esforço se deu em dois níveis. Perante a sociedade civil e algumas instituições políticas, eles patrocinaram um diálogo missionário aprofundado, estendido até as camadas sociais mais influentes do império; ao mesmo tempo, dentro da comunidade cuidaram de uma organização mais eficiente das estruturas eclesiais, a partir, justamente, do sacerdócio hierárquico e da autoridade do bispo. No que diz respeito a essa questão, a primeira fonte documental deve ser a Tradição Apostólica.

De modo geral, devemos reconhecer que nos Padres pré-nicenos se encontram indicações apenas ocasionais a respeito do itinerário de formação do presbítero. Só perto do final do século II aparece a figura do “diácono” destinado à formação dos clérigos: nas primeiras gerações cristãs, “os bispos sucessores dos apóstolos continuam a formação dos candidatos ao sacerdócio como faziam os apóstolos [...]. O formador dos clérigos, portanto, é o bispo no papel de mestre, liturgo, pastor” .

Mas voltemos a considerar detalhadamente os três momentos evocados: em primeiro lugar, o período mais antigo, depois o século III e, enfim, o “ponto de articulação” constituído pela era severiana.


1.1. Os Padres dos séculos I e II
“Escolham para vocês bispos e diáconos dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados, porque eles também exercem para vocês o ministério [leitourgia] dos profetas e dos mestres. Não os desprezem, porque entre vocês eles têm a mesma dignidade que os profetas e mestres.”

Assim, a Didaqué, na esteira do Novo Testamento, menciona “bispos e diáconos” escolhidos pela comunidade. Estes exercem um ministério semelhante ao dos profetas e dos doutores, que por sua vez ensinam “para estabelecer a justiça e o conhecimento do Senhor” .

O contexto da citação – marcadamente os capítulos 11-15 – é esclarecedor. Ali é descrita a unidade essencial dos cristãos, que, em conformidade com as cenas descritas por Lucas dos Atos, vivem o mandamento do amor fraterno até o ponto de pôr “tudo em comum”. Cada um se sente “companheiro” do próximo, num mesmo plano de paridade e de igualdade. Todavia, não se trata de uma comunidade amorfa e indistinta. Ao contrário, já aparecem ali carismas e papéis bem definidos. O texto fala da presença de profetas itinerantes, que gozavam de particular estima e honra na comunidade, de doutores e, enfim, de bispos e diáconos. Essa última referência é muito importante, até porque testemunha a progressiva absorção da hierarquia carismático-itinerante (apóstolos-profetas-doutores) na institucional das igrejas locais (bispos-presbíteros-diáconos) .

É interessante notar como essa pluralidade de ministérios corresponde a uma imagem de Igreja salutarmente “dispersa” em sua missão no mundo, ao mesmo tempo em que é pedido e esperado o dom da unidade: “Do mesmo modo como este pão partido tinha sido semeado sobre as colinas, e depois recolhido para se tornar um”, reza a oração eucarística da Didaqué, “assim também a tua Igreja seja reunida desde os confins da terra no teu reino”. E pouco adiante: “Lembra-te, Senhor, da tua Igreja, livrando-a de todo o mal e aperfeiçoando-a no teu amor. Reúne dos quatro ventos esta Igreja santificada para o teu reino que lhe preparaste, porque teu é o poder e a glória para sempre” .

Clemente, na Primeira carta aos coríntios, recomenda “fazer com ordem tudo o que o Senhor nos mandou realizar nos tempos determinados. Ele ordenou que as ofertas e as funções litúrgicas [leitourgiai] fossem realizadas, não ao acaso ou desordenadamente, mas em circunstâncias e horas determinadas. Ele próprio, por sua soberana vontade, determinou onde e por quem ele deseja que as coisas sejam realizadas, a fim de que cada coisa, feita santamente com a sua santa aprovação, seja agradável à sua vontade. [...] Ao sumo sacerdote foram confiados ofícios litúrgicos particulares; os sacerdotes foi designado seu lugar particular; e aos levitas foram impostos serviços particulares. O leigo está ligado aos preceitos leigos” .

Dessa forma, referindo-se à liturgia do antigo Israel, Clemente revela seu ideal de Igreja. Já nos capítulos anteriores da Carta, ele havia chamado a atenção para outras duas analogias. A primeira é a do exército, em que os soldados são submissos, cada um na própria ordem, a seus comandantes. A segunda é a do corpo, em que todos os membros “têm subordinação mútua” para a conservação do corpo inteiro. Mas o eixo em torno do qual giram as três analogias – a do exército, a do corpo e a do antigo Israel – é um só, precisamente o da ordem universal que preside o macro e o microcosmo. Sua força edificadora é “um só Espírito de graça, que foi derramado sobre nós”, que inspira os diversos membros do corpo de Cristo, em que todos, sem nenhuma distinção, são “membros uns dos outros” . A Igreja, todavia, não é lugar de confusão e de anarquia, em que alguém pode fazer o que quiser, pois cada um exerce nela seu ministério em sua ordem, estando no lugar que lhe é assinalado segundo o carisma que recebeu.

Mas essa pluralidade de ministérios – tanto em Clemente quanto na Didaqué – é orientada para a missão comum, mencionada na “grande oração” conclusiva: “Que todas as nações reconheçam que tu és o único Deus, que Jesus Cristo é o teu Filho, e nós somos o teu povo e ovelhas do teu rebanho” .



A maravilhosa “subordinação mútua” de que fala Clemente se torna “sinfonia da unidade” nas Cartas de Inácio: valem, nesse sentido, as reflexões já desenvolvidas sobre o epistolário inaciano .

O que aproxima os documentos até agora apresentados, e alcança o ponto mais alto em Inácio, é – como já tivemos a oportunidade de notar – uma espécie de dialética entre dois elementos irrenunciáveis da vida cristã: de um lado, a unidade fundamental que liga entre si todos os fiéis em Cristo; de outro, a estrutura hierárquica da Igreja.

Mas nesses textos antigos não há espaço para a oposição dos papéis. Ao contrário, a experiência fundamental da comunhão e da reciprocidade dos crentes alicerça e sustém a consciência da missão comum. A certeza de pertencer a um só corpo, projetado totalmente para a missão, supera a força de identificação exercida por cada um dos ministérios desenvolvidos no âmbito do mesmo corpo, que tem Cristo por cabeça .


1.2. Os Padres do século III
A situação muda no século III, quando os leigos começam a ser considerados expressamente como “categoria” no âmbito eclesial. É nesse momento que se distinguem dos clérigos, mesmo havendo a consciência de que estes últimos provêm do laicato. O termo leigo pode passar a ter conotação negativa, na medida em que se manifesta nas comunidades todo o peso hierárquico dos ministérios ordenados.

Por outro lado, não podemos afirmar que no século III tenha desaparecido também a consciência do sacerdócio comum dos fiéis como característica distintiva do novo povo de Deus. Demonstram-no numerosos testemunhos, até de autores normalmente apresentados para demonstrar a progressiva hierarquização da Igreja.

O próprio Clemente de Alexandria, que em outro contexto alude à “infidelidade laica” , não se cansa de repetir que o Logos é o pedagogo comum de um único “povo novo e jovem”, o povo da “nova jovem aliança” . E Orígenes, ligando-se à rica exegese subapostólica de 1Pd 2,9 (“Vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo que Ele conquistou” ), na nona Homilia sobre o Levítico desenha nestes termos a identidade sacerdotal de cada crente: “Não sabes que também a ti, ou seja, a toda a Igreja de Deus e ao povo dos crentes, foi conferido o sacerdócio? Ouve como Pedro fala dos fiéis: ‘Raça eleita’, diz, ‘sacerdócio real, nação santa, povo que Ele conquistou’. Tu, portanto, tens o sacerdócio porque és ‘estirpe sacerdotal’” .

Além disso, o fato de todos os fiéis, na variedade de seu ministério específico, serem chamados a uma missão comum de salvação fica claro, entre outras coisas, por um singular testemunho do Contra Celsum: os cristãos, afirma Orígenes, não prestam o serviço militar porque são sacerdotes, e participam assim da tarefa que os pagãos reconheciam a seus sacerdotes. “Os cristãos”, prossegue o alexandrino no mesmo contexto, “são muito mais úteis à pátria que todos os outros homens: eles formam seus concidadãos, ensinam a eles a devoção a Deus, guardião da cidade. Eles ajudam aqueles que vivem honestamente em suas pequenas cidades a subir para uma polis divina e celeste” .


1.3. A passagem do primeiro para o segundo período
Definitivamente – a despeito daqueles que estão mais propensos a ver nos testemunhos patrísticos uma contraposição sistemática entre hierarquia e laicato , e em última análise uma delegação incondicional da missão aos ministros ordenados –, parece que na era pré-nicena nunca desapareceu uma dialética fecunda entre a unidade fundamental da “raça eleita” e a estrutura hierárquica da Igreja. Devemos falar, antes, de um balanceamento diferente entre as duas instâncias. Simplificando ao máximo, poderíamos dizer que à hegemonia da primeira se segue o prevalecimento da segunda: no meio, “ponto de articulação” dos dois períodos, está a época dos imperadores Severos (193-235).

Assim formulada, a simplificação parece sem dúvida excessiva. Esta conserva, todavia, um valor de provocação, que convida imediatamente ao estudo do ambiente histórico-institucional entre os século I e II. Esse é realmente um capítulo decisivo para quem pretende “escrever uma história da missão cristã e da conversão do mundo antigo” .

De modo geral, a organização da república nesse período manifesta as brechas para a próxima crise, ao mesmo tempo em que as instituições eclesiais vão-se afirmando pouco a pouco num império oficialmente perseguidor. Enquanto a crise é retardada pelo advento dos Severos – visivelmente empenhados na consolidação e na propaganda religiosa da monarquia -, a adesão já evidente dos ambientes da corte e das clarissimae famílias de senadores ao cristianismo prenuncia o ato de conquista definitivo do império por parte da Igreja, talvez mais empenhada do que nunca em estender o diálogo missionário até as camadas sociais mais influentes da sociedade.

Assim, no contexto paradoxal da era severiana – em que os cristãos eram perseguidos e ainda assim admitidos à intimidade da família imperial -, a difusão ampliada do cristianismo levou em primeiro lugar a um incremento quantitativo e qualitativo dos leigos na Igreja. Em segundo lugar, as trocas mais intensas entre cultura pagã e cultura cristã expuseram a instituição eclesial a uma série de influências heterogêneas, provenientes, por um lado, da sociedade romana e de sua organização piramidal e, por outro, da tradição platônica e de seus modelos de polis estruturados como degradação da perfeição do Um à imperfeição do múltiplo. É preciso, além disso, somar a essas influências as que derivam de determinadas representações veterotestamentárias, que expunham uma clara separação entre a casta sacerdotal e o povo .

Coerentemente, as duas exigências complementares e inevitáveis da vida eclesial – de um lado, a exigência de respeitar o sacerdócio comum dos crentes e a estrutura carismática da Igreja; de outro, a de valorizar o sacramento da ordem e a estrutura hierárquica do povo de Deus – vieram à tona de modo inédito, solicitadas pelo novo clima político e cultural.

Em particular, a urgência de estruturas organizativas mais definidas e eficientes, a começar justamente da autoridade do bispo e da formação dos clérigos, viria a refletir-se numa marcada hierarquização da comunidade.

O comprovante documental desse fato nos é fornecido, primordialmente, por um famoso escrito pertencente ao corpus hipolitiano: a Tradição Apostólica, o mais antigo ritual para as ordenações, que continua a inspirar nossas liturgias. Ainda hoje a Igreja romana celebra a ordenação dos bispos com o texto da Traditio, e adota sua substância da oferta na segunda Oração Eucarística .

Os problemas da paternidade, da datação e da transmissão desse documento venerando – que não nos chegou diretamente, mas foi identificado e reconstruído com base em fontes posteriores – se misturam com a vexata quaestio hipolitiana . Em todo caso, o texto antigo da Traditio é comumente atribuído ao coração do período severiano, por volta de 215.

Na Tradição Apostólica, os clérigos aparecem definitivamente configurados na tríade bispos-presbíteros-diáconos.

Só a estes é reservada a ordenação pela imposição das mãos . Por meio desse rito é concedida a graça, destinada de modo especial ao exercício do ministério correspondente. Outros ministérios são reconhecidos e instituídos, mas sem a ordenação e a impositio manuum: de fato, a questão não é habilitar alguém para um ofício litúrgico de presidência, mas simplesmente reconhecer um estado de fato (confessores, virgens, curadores), assinalar um título (viúvas), ou confiar uma tarefa (leitor, subdiácono).

O papel do bispo assume o mais alto destaque: é ele que ordena, é ele o chefe, é ele o sucessor dos apóstolos, é ele que participa do Espírito do sumo sacerdócio. Os presbíteros são seus conselheiros e ajudantes no governo do povo, como os sacerdotes escolhidos por Moisés. Os diáconos, além disso, não são ordenados ao sacerdócio, mas ao serviço do bispo, para que cumpram suas ordens.

“Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, reza a solene oração da consagração episcopal, “infundi agora a força – que vem de vós – do Espírito principal, que doastes a vosso dileto Filho Jesus Cristo, e ele por sua vez aos santos apóstolos [...]. Pai, que conheceis os corações, concedei a vosso servo que escolhestes para o episcopado apascentar vosso santo rebanho e exercer irrepreensivelmente diante de vós o sumo sacerdócio, servindo-vos noite e dia; que ele torne incessantemente propício vosso olhar e ofereça os dons de vossa santa Igreja; que, em virtude do espírito do sumo sacerdócio, tenha o poder de perdoar os pecados segundo o vosso mandamento, distribua os encargos conforme vossa ordem e se desligue de todo vínculo em virtude do poder que destes aos apóstolos” .

É claro que não nos pode escapar a tripla referência ao primado do sacerdócio episcopal. De nossa parte, consideramos que este deve ser considerado como o traço característico daquele “impulso hierarquizante” que atravessou os pontificados de Vítor, de Zeferino e de Calixto, e que levou a comunidade cristã de Roma, entre o final do século II e o início do III, “a organizar-se em sentido fortemente unitário, potencializando a autoridade do bispo” .

Por outro lado, como vimos, a Tradição Apostólica apresenta também uma fecunda pluralidade de ministérios não ordenados – os dos confessores, das viúvas, dos leitores, das virgens, dos subdiáconos e dos curadores, a que devem ser acrescentados os dos ostiários e dos acólitos -, que certamente não parece “achatada” pela autoridade do bispo . Dialogando com os ministros e com todos os fiéis, o bispo concelebra, na liturgia e na vida, a oração da oferta sacrifical e a solene doxologia conclusiva, que expressa a perene missão do Filho e do Espírito à Igreja e ao mundo: “Nós vos rogamos que envieis teu Espírito Santo sobre a oferta da santa Igreja, que deis unidade a todos aqueles que dela participam, que lhes concedais serem repletos do Espírito Santo e fortificados na fé da verdade, para que vos louvem e vos glorifiquem por Jesus Cristo, vosso Filho, pelo qual vós, Pai e Filho com o Espírito Santo na santa Igreja, tendes honra e glória agora e para sempre” .

2. Depois de Niceia, rumo a Calcedônia (325-451)

2.1. O contexto histórico
A “tendência histórica” dominante na Igreja dos séculos IV e V é a de uma progressiva afirmação da religião cristã sobre o paganismo. Em menos de oitenta anos, passamos da perseguição à supremacia do cristianismo (edito de Teodósio, de 380) .
Nesse contexto, a chamada “Igreja imperial” é cada vez mais solicitada a organizar suas estruturas internas, partindo, naturalmente, dos vários graus hierárquicos e da formação dos ministros sagrados.

2.2. As ordens ou “graus” hierárquicos
Ao longo do século IV é afirmada a subdivisão do clero em dois grupos, que, no início do século seguinte, Inocêncio I (401-417) indicará como clerici superioris ordinis (bispos-presbíteros-diáconos) e clerici inferioris ordinis (subdiáconos-acólitos-exorcistas-ostiários-leitores) . Mas os graus inferiores ficam submetidos a fortes variações, tanto no número quanto na avaliação (pertenceriam realmente ao clero?), quanto, ainda, na definição das relativas tarefas .


2.3. Os tratados sobre o sacerdócio
Ao mesmo tempo, entre os séculos IV e V, assistimos a uma verdadeira proliferação de escritos sobre o tema da santidade sacerdotal. É oportuno relacioná-los. No Oriente, além do breve Sermão sobre o sacerdócio de Efrém Sírio († 373), temos a segunda Oração de Gregório Nazianzeno († 390) e o célebre Diálogo sobre o sacerdócio de João Crisóstomo († 407); no Ocidente, é preciso lembrar pelo menos do De officiis [ministrorum] de Ambrósio († 397), da carta de Jerônimo († 419 ou 420) a Nepociano e de diversos discursos e cartas de Santo Agostinho († 430) .


2.4. “Formação clerical” e “formação monástica”
A preocupação com a formação está também muito presente nas experiências monásticas dos séculos IV e V . Podemos, aliás, falar de “uma estreita interação” entre formação clerical e formação monástica . Quanto a isso, é preciso considerar sobretudo as Conlationes, encontros comunitários em forma de diálogo, dirigidas por um “ancião”: nasce assim, precisamente no âmbito monástico-eremítico, a figura do “orientador espiritual”.

Antônio abade († 356) é o iniciador do monaquismo na forma eremítica. É também Antônio quem estabelece a figura do orientador espiritual, como guia para a perfeição: “Vós, como filhos”, escrevia a seus monges, “trazei-me, como a um pai, as coisas que sabeis, e dizei-mas. De minha parte, sendo eu mais idoso que vós, partilharei convosco o que sei e o que experimentei” .

Ao lado de Antônio, temos de recordar também Pacômio, que funda em 323 a primeira comunidade cenobítica, com suas estruturas características (mosteiro, regra, abade), e Basílio († 379), para quem a vida monástica é a perfeita realização da vida cristã.

Mas é sobretudo no Ocidente que se registra o encontro entre formação clerical e formação monástica. Eusébio, bispo de Vercelli a partir de 345, é o primeiro a reunir seu clero em vita communis, tornando-se, portanto, o fundador do mais antigo monasterium clericorum. A história do encontro entre instituição monástica e eclesiástica prossegue com Hilário de Poitiers († 367) e Martinho de Tours († 357), verdadeiro modelo de monge-bispo. No “ponto de chegada” encontramos Agostinho. Depois da ordenação episcopal, escreve ele mesmo, “quis ter em casa um mosteiro de clérigos. [...] E sabei todos”, observa a seus fiéis, “que nós vivemos aqui, na chamada casa do bispo, para, no limite do possível, imitar esses santos de que fala o livro dos Atos dos Apóstolos: ‘Não havia ninguém que considerasse como seu o que possuía, mas tudo tinham em comum’” . Também em Cartago, Agostinho institui um mosteiro com as mesmas finalidades.

3. Conclusão
Como conclusão desta síntese, que teve a intenção de reunir em seu quadro histórico os testemunhos patrísticos sobre a formação sacerdotal, é oportuno reler uma passagem importante da Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi: “Um relance sobre as origens da Igreja”, escrevia Paulo VI em 1975, “é muito elucidativo e fará com que nos beneficiemos de uma antiga experiência nesta matéria dos ministérios, experiência que se apresenta válida, dado que permitiu à Igreja consolidar-se, crescer e expandir-se” .

Essa é a perspectiva destas páginas, que quiseram confrontar uma das reflexões iniciais da PDV com a história das origens cristãs: “‘Jesus subiu a um monte e chamou os que Ele quis. E foram ter com Ele. [...]’ Podemos afirmar que, em sua história”, diz o nosso texto, “a Igreja sempre reviveu, embora com intensidades e modalidades diversas, essa página do Evangelho, mediante a obra formadora reservada aos candidatos ao presbiterado e aos próprios sacerdotes” .

De nossa parte, continuamos convictos de que a referência à viva tradição dos Padres ajude “formadores” e “formandos” a se confrontarem eficazmente, a cada momento da formação sacerdotal, com a “fisionomia essencial do sacerdote que não muda” . Afinal, o sacerdote da “nova evangelização”, como o presbítero das origens cristãs, é chamado também a ser sempre imagem viva e transparente de Cristo bom Pastor.