segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Herança cultural e aspectos inovadores da Literatura Cristã Antiga: fundamentação da autonomia da disciplina.

(sarcófago cristão do século IV)


Tomemos como ponto de partida um dado de fato: a literatura cristã antiga é uma disciplina relativamente jovem. As primeiras cátedras italianas desta matéria remontam ao ano de 1949. Mas vejamos porque é tão jovem e porque os seus inícios foram bastante contestados. A especificidade imediata de toda literatura é de caráter externo, formal, isto é, é dada pela língua. Fala-se, de fato, de literatura italiana, inglesa, francesa, alemã e assim por diante. Aqui, por outro lado, temos uma literatura que se caracteriza não tanto pela língua mas pelo seu conteúdo. De fato, a literatura cristã antiga tem como seu objeto obras escritas originalmente em grego, latim e também em línguas orientais. Esta característica a especifica muito bem, porque representa um unicum: falamos de uma literatura cristã antiga, mas não, por exemplo, de uma literatura cristã medieval. Isto ocorre porque, com a difusão do cristianismo, o Medievo é todo cristianizado, seja no Oriente, seja no Ocidente: por essa razão, a literatura latina medieval e aquela grega bizantina são naturaliter cristãs. Por outro lado, a literatura cristã antiga se contrapõe já na nomenclatura às literaturas clássicas grega e latina.
Justamente pelo seu caracterizar-se mais sobre a base de conteúdo do que sobre a língua, houve quem contestasse absolutamente a autonomia da literatura cristã antiga. Ainda no início do século passado U. von Wilamowitz, o princeps philologorum, negou a existência autônoma da nossa disciplina porque considerou prevalecente a língua pela qual o conteúdo cristão foi expresso: para ele há uma literatura grega e uma latina, sem distinção entre conteúdo pagão e cristão. Atualmente prevalece largamente, não só na Itália mas também no exterior, a concepção de uma autonomia da disciplina, fundada sobre a valorização do conteúdo em detrimento da língua.
Acenamos agora a outro dado de caráter geral que interfere profundamente no nosso argumento. O que se entende por literatura, a partir do que falamos de literatura italiana, francesa, inglesa? É o mesmo que dizer: quais são os textos que fazem com que exista uma literatura italiana? Hoje, a concepção de literatura é latitudinária: podemos justamente dizer que tudo aquilo que se escreve e se publica em língua italiana é literatura. Por exemplo, até um romance policial é considerado literatura. Mas há 40/50 anos as coisas eram bem diversas: para caracterizar uma literatura não bastava somente o fato de que existisse materialmente um texto escrito em uma determinada língua, mas se exigia que fosse escrito em um determinado modo, que tivesse “dignidade literária”. Por isso, algumas décadas atrás, ninguém sonharia de considerar parte da literatura inglesa um romance de Aghata Christie. Hoje, como disse, as coisas são diferentes, mas ainda a situação era esta e tal convicção generalizada teve reflexos também no nosso âmbito especifico.
Comumente compreendem-se no âmbito da literatura cristã antiga todos os textos cristãos escritos entre o I e o VIII século. Mas um importante crítico alemão que esteve ativo por volta da metade do século XIX, F.J. Overbeck, afirmava que podia-se falar de textos cristãos somente a partir de Clemente de Alexandria, isto é, por volta do final do século II. Em outros termos, autores como Inácio, Justino e Irineu não eram dignos de fazer parte da literatura porque não divisava em suas obras aquela dignidade literária, isto é, aquela refinada elaboração retórica e estilística que, segundo ele e muitos de seu tempo, era constitutiva de uma literatura. Quer dizer, esta valoração tinha em conta não só aquilo que era escrito mas sobretudo o modo como foi escrito. Hoje, a retórica tendo sido colocada de lado há tantos anos, prevalece uma concepção muito mais ampla de literatura e isto foi muito importante para a tomada de consciência acerca da autonomia da literatura cristã antiga como algo à parte, enquanto que a consideração do conteúdo assumiu um valor decididamente prevalecente respeito à forma pela qual este conteúdo foi expresso.
Tudo isso serve como introdução ao nosso argumento específico, isto é, “tradição e inovação”. Quando falo de “forma expressiva de certo nível”, no mundo antigo, faço imediatamente referência à retórica que, naquele tempo longínquo, diversamente de hoje, constituía a disciplina básica de toda forma de instrução. Mas esta, se por um lado coliga a literatura cristã com a tradição clássica, por outro lado revela o estado de tensão dialética com a qual aquela conexão era vivida.
Para apresentar o argumento com clareza, tomemos os movimentos da concepção que muitos cristãos tiveram, já nos inícios do século II, do seu específico “ser no mundo”, em contraposição seja com os judeus, seja com os gregos: é mais ou menos neste tempo que esses se caracterizaram como um triton genos em relação seja a uns, seja a outros, afirmando orgulhosamente a sua singularidade respeito àqueles que, para eles, eram as entidades culturais mais importantes. Nascidos no mundo judaico, difundiram-se rapidamente pelo mundo grego, mas com características que lhes permitem a consciência de representar algo de novo e diverso em relação seja ao mundo judaico, seja ao mundo grego. De outra parte, inevitavelmente estes assumiram muitos elementos seja de uma parte, seja de outra.
Inicialmente, por força do estado de coisas, o influxo prevalecente foi o judaico: em substância, os cristãos se diferenciaram dos judeus enquanto retêm que Cristo seja o Messias e que a fé nele os resgata do pecado e da morte espiritual, enquanto que a maior parte dos judeus refuta tal identificação e seu significado salvífico. Todavia, posta esta fundamental diferença, os cristãos, enquanto judeus por nascimento e educação, da maneira mais natural, assumem toda aquela cultura judaica na maneira de exprimirem-se e também como exprimem aquilo que é não específico em relação ao problema messiânico. Estamos, justamente, nos primórdios. Mas rapidamente o cristianismo expandiu-se pelo mundo grego, e depois romano; os novos adeptos começaram a ser, de maneira prevalecente sempre maior, de origem pagã em relação à originária pertença ao mundo judaico, e o cristianismo, pois, após o confronto com o mundo judaico, inicia o seu combate com o mundo o mundo grego. Também aqui se caracteriza pelo conteúdo que, em relação ao mundo pagão, era de oposição ainda mais radical que em relação ao mundo judaico. Com os judeus, os cristãos codividiram uma larguíssima tradição de caráter religioso, sintetizada sobretudo no Antigo Testamento. Por outro lado, com o mundo pagão, a contraposição é programática. Os cristãos debatem com os judeus, mas aos pagãos se contrapõem de maneira mais decidida, porque não pode haver nenhum terreno comum entre o monoteísmo cristológico e o politeísmo com a sua tradição religiosa. De outra parte, estes cristãos, agora, passam rapidamente do aramaico ao grego (mas já na primeira geração os missionários cristãos falavam em grego, mais do que em aramaico); o “falar grego”, e depois no mundo latino o “falar latim”, por força das coisas, estabelece uma relação estreita com a cultura pagã, que se exprimia justamente em grego e em latim, sem que por outro lado seja deixada de lado a precedente influencia judaica. Para aclarar com um exemplo a presença simultânea do influxo judaico e do grego, sublinhamos como duas foram as formas mais importantes nas quais tomou forma a literatura exegética dedicada à interpretação da Sagrada Escritura: a Homilia e o Comentário. A homilia deriva da sinagoga, isto é, da tradição judaica; o comentário, por sua vez, da tradição escolástica grega. Deste modo, uma única exigência de caráter hermenêutico se configura literariamente de maneira diversa conforme ao influxo prevalecente, judaico ou pagão. Mas, para nós, isso é fundamental: nesta justaposição, os dois influxos vêm a compenetrarem-se um com o outro. Orígenes, que praticou primeiro o comentário de origem escolástica e sucessivamente a homilia, estruturou esta sobre a base do comentário e, de fato, fundiu na homilia exegética dois gêneros literários que eram, respeito à origem, radicalmente diversos um do outro. Assim, os dois influxos se compenetraram: a cultura cristã se apropria dos influxos de uma parte e de outra e não somente os justapõem, mas tende a misturá-los para realizar algo de novo em relação a ambas as fontes. Esta dialética de inovação e tradição é fundamentalmente aquela da relação entre conteúdo e forma.
Falava, pouco antes, do influxo determinante da retórica: esta disciplina, hoje obliterada na escola, constituía, então, a base do ensinamento escolástico de certo nível. Isto faz com que, quando um cristão escreve, sendo enquanto alfabetizado pessoa de certo, até modesto, nível cultural, se exprime segundo os módulos da retórica tradicional aprendidos na escola: de fato, os escritores cristãos do II e III séculos, exceto raras exceções, (Irineu, Orígenes), são pagãos convertidos em idade adulta e que, por essa razão, foram formados escolástica e culturalmente no mundo pagão, estudaram na escola pagã, baseada sobre o estudo, no mundo oriental, em Homero, Tucídides, Demóstenes, e no mundo ocidental em Virgílio, Cícero, Salústio, Lívio, a ponto de assimilar uma, mais ou menos, completa formação cultural. Tornando-se cristãos, estes têm consciência de terem nascido, mediante o batismo, para uma nova vida exteriormente, mas sobretudo interiormente, diversa da precedente e a esta contraposta. Por isso, agora, passando do paganismo ao cristianismo, estes têm a consciência da exigência de libertarem-se da formação cultural anterior, mas não se pode dispor súbito de um habitus intelectual adquirido em anos de dura fadiga, passados, no nível elementar, a golpes de férula ministrados generosamente pelo mestre, como nos recorda Horácio[1].
O contraste é sentido de maneira muito forte a nível teórico. Diz Tertuliano: “que coisa há em comum entre Jerusalém e Atenas? E entre o Pórtico de Salomão e o pórtico da Stoa?”. O senso é de uma fratura que, como é radical em âmbito religioso, porque não pode haver contato entre a religião cristã e aquela pagã, deveria existir também no âmbito literário, porque não deveria também existir contato entre a expressão literária pagã e cristã. A oposição teórica é clara: a refutação da cultura pagã é atestada praticamente por todos os autores do século II, com a exceção muito parcial de Justino e, mais convicta, de Clemente de Alexandria. Todavia é uma posição teórica. Pois, quando, de fato, esses autores colocam por escrito as suas reflexões, eis que não conseguem libertarem-se daquela que é a sua preparação cultural, nem mesmo aqueles que, como Taciano e Tertuliano, são mais drásticos na condenação da cultura clássica: aprenderam a escrever de uma determinada maneira e não podem começar, improvisadamente, a escrever em outra. Por isso também, se o conteúdo é radicalmente novo, a forma continua sempre aderida à tradição clássica.
Aqui devemos fazer uma distinção entre o ambiente oriental e ocidental, porque constatamos no mundo cristão de língua grega o prolongamento de uma distinção que é evidente na literatura pagã. Os gregos desenvolveram, além de uma forma retórica de alta qualidade literária (característica, obviamente, da oratória, mas também da grande historiografia) também um modo mais simples de exprimir-se, próprio da literatura memorialista, que nós definimos por hypomnemata, um modo mais simples que é, por exemplo, aquele da expressão filosófica. Os filósofos do século III em diante se exprimiram com esta língua literariamente mais simples e discursiva, propositadamente de perfil mais simplório quanto à elaboração retórica, que é apreciada como uma grande conquista em âmbito literário, porque é a língua, além daquela da filosofia, também daquelas disciplinas que definimos científicas in latu sensu. É a língua na qual se exprimiram naturalmente autores como Justino e Irineu. Sem dúvida há também ambições de uma expressão mais refinada e sobretudo não faltam ocasiões nas quais o autor tem por oportuno alçar o tom do estilo como, por exemplo, quando Clemente de Alexandria se dirige a leitores pagãos em seu Protreptico: mas fundamentalmente a língua desses escritores gregos do final do século I, de todo o século II até o próprio Orígenes, no século III, é a língua dos hypmnemata.
O latim praticamente ignorou este modo de expressão, em benefício de uma literatura sempre mais de alto nível. Um grande historiador, Th. Mommsen, afirmou que toda a literatura latina está impregnada da retórica: fazia exceção somente para Catullo. Este juízo, expresso de maneira tão radical, é evidentemente muito exagerado. Mas não se pode negar que Mommsen tenha colhido uma característica fundamental do modo de expressão latino e, justamente, de seu modo de pensar: a retórica, sendo puramente de origem grega, em Roma foi assimilada de maneira tão radical a ponto de tornar-se um verdadeiro e próprio modo não somente de exprimir-se, mas também de pensar e viver, até mesmo também de morrer: basta mencionar a morte de Cícero, a de Lucano e, antifrasticamente, como morre Petrônio segundo a célebre narração de Tácito[2]. Neste sentido, Mommsen percebeu um caráter constitutivo da literatura prosástica latina, a qual ignorou o modo de expressão em senso mais simples que é a linguagem científica dos gregos: quando Sêneca escreve sobre ciência, a sua prosa é retoricamente refinada assim como quando escreve sobre argumentos de filosofia moral. Este caráter passa ao âmbito cristão. Tertuliano e Ciprinao, os dois mais importantes autores cristãos de língua latina do século III exprimem-se sempre em um nível retoricamente muito refinado. Tertuliano introduziu na literatura cristã o tratado breve e muito elaborado retoricamente, dedicado a um argumento específico de doutrina, moral ou outro (de baptismo, de patientia, adversus Praxean, etc.), tomando como exemplo Cícero (Brutus, de amicitia etc.) e Sêneca (de clementia, de ira); Cipriano seguiu o seu exemplo (ad Donatum, de mortalitate, de zelo et livore etc.). De tal modo, conteúdos novos, expressões de um modo de viver e pensar muito específicos em relação ao que ocorria em ambiente pagão, vêm expressos em uma forma que é ligada muito estreitamente à tradição clássica.
Porém, a relação entre inovação e tradição, originalidade e adesão aos modelos clássicos não se apresenta sempre simples como o expomos até o presente momento. De um lado, de fato, o influxo clássico se estende além da forma, ao modo mesmo de elaborar o conteúdo, e de outro lado, a novidade do conteúdo afeta também a forma. De uma parte, sublinhamos que também os autores cristãos mais programaticamente hostis à cultura pagã, como Taciano e Tertuliano, devendo elaborar conteúdo doutrinalmente significativo, não podem fazer mais do que inserir os dados específicos do cristianismo em uma trama de pensamento caracterizada pelos parâmetros e módulos de desenvolvimento típicos da filosofia grega, sobretudo platônica e estóica, os únicos que poderiam permitir o desenvolvimento dos escassos dados de uma insipiente reflexão doutrinal em um discurso coerente e orgânico. Por outro lado, a novidade do conteúdo, por sua vez, impõe um modo de exprimir-se que resulta, também este, novo em relação aos modelos pagãos. No período anterior à revolução constantiniana do século IV, o exemplo mais importante neste âmbito é representado pela Ekklesiastiké historía (que seria preferível traduzir “História da Igreja” do que “História Eclesiástica”) de Eusébio de Cesaréia. O fato de ser uma obra histórica a insere na rica tradição historiográfica grega (Herodoto, Tucídides, Polibio): entretanto, em relação a estes e a outros modelos tradicionais, a obra histórica de Eusébio representa um fato novo e original, dado que o mundo antigo ignorou a história de um movimento religioso. A religião, enquanto tal, não podia ter história, uma vez que no mundo antigo esta se tornava extrínseca através de um culto oficial, que se repetia sempre igual pelos séculos, era caracterizada pela imobilidade, pela estabilidade, portanto, da carência de eventos que poderiam ser caracterizados como históricos. A vida da igreja cristã, ao invés disso, foi muito atribulada seja externa (através das difíceis relações com judeus e romanos), seja internamente (pelos contrastes de caráter doutrinal e disciplinar). Havia, por isso, matéria para escrever uma obra histórica. Por essa razão, o fato mesmo de escrever uma historia coligava estreitamente Eusébio com a tradição literária grega, da qual a historiografia era uma das manifestações mais elevadas e, deste coligamento, Eusébio, pessoa cultíssima, estava perfeitamente consciente. Mas nesta tradição ele se insere de maneira totalmente original. A historiografia era considerada forma literária de alto nível cultural. Eforo e Teopompo, discípulos de Isócrates, tinham formalizado este conceito, em virtude do que Cícero definia a história opus maxime oratorium. No tempo de Eusébio, o modelo historiográfico por excelência, mais do que os historiadores do período helenístico, era Tucidides, o maior historiador da antiguidade. E, então, havia também tentativas de imitar aquele estilo tão difícil e tão pessoal. Estamos, de qualquer modo, aos níveis máximos da expressão literária. Porém, Eusébio preferiu aquela forma memorialista que - já o acenamos – no mundo antigo era a forma expressiva do tratado filosófico e científico, mas não da obra histórica. Porque o fez não o diz, mas provavelmente, sendo o seu escrito riquíssimo de documentação citada em modo imediato (alguns livros da Historia de Eusébio paracem, justamente, uma coletânea de passos tirados de autores cristãos precedentes e colocados juntos em uma espécie de colagem), exatamente porque captou a importância de reportar esta documentação, decisiva para a compreensão do cristianismo e já de difícil acesso na sua forma original: por isso, sem reelaborá-la afim de inseri-la organicamente no próprio discurso histórico – como deveria ter feito para realizar uma obra histórica de alto nível – preferiu uma forma de expressão mais simples.
Eusébio, por outro lado, sabe também exprimir-se em modo muito elevado: quando celebra Constantino, o nível da sua prosa se alça, e não pouco. Por essa razão, a forma pouco elaborada da História foi por ele expressamente querida em função da ampla componente documentaria do seu discurso histórico. Desta maneira, ele fixou de modo definitivo, no ambiente literário cristão de língua grega, os caracteres da historiografia, porque em grande parte os historiógrafos posteriores se espelharam no modelo eusebiano. Assim, um gênero da literatura clássica, de alto nível estilisco e expressivamente bem especificado na longa tradição, passou às letras cristãs com características novas, seja em relação ao conteúdo, seja em relação à forma de expressão.
Estamos ainda no período anterior à grande revolução constantiniana: Eusébio está, de fato, entre a época que ele mesmo definiu “dos mártires” e a grande reforma de Constantino. A “revolução” constantiniana teve repercussões fortíssimas também no nosso âmbito específico, como sobre todos os outros da vida da igreja. O cristianismo torna-se rapidamente religião favorita do imperador e, já no final do século IV, obtém a prerrogativa legal de ser a única religião oficialmente reconhecida pelo Estado. Este novo estado de coisas proporcionou, como é óbvio, não somente uma dilatação enorme no decorrer de poucas décadas, mas também um aumento fortíssimo de peso e prestigio, uma presença, com o passar dos anos, cada vez mais forte e significativa em todas as manifestações características da vida do Império. Neste contexto, os cristãos perceberam muito a exigência de especificar eficazmente a sua presença também do ponto de vista da forma expressiva. É então que a homilia, até então caracterizada em relação à forma de maneira simples e modesta, vem a ser opus oratorium de grande aparato. Se confrontamos as homilias de João Crisóstomo com as de Orígenes, a diferença não poderia ser mais evidente e palpável. A oratória cristã torna-se, assim, uma oratória de aparato, como era aquela pagã. À novidade do conteúdo deve corresponder uma elevação de caráter formal. Esta consciência coloca um problema. Uma das novas formas da oratória cristã, talvez a mais específica, é o panegírico dos mártires na ocorrência do dies natalis. Com efeito, o culto dos mártires tornou-se o aspecto mais distintivo e aparente do culto cristão e, quando ocorria a festividade do mártir, era praxe que um orador lhe celebrasse as gestas com um panegírico, isto é, com um tipo de discurso celebrativo e encomiástico, tradicionalíssimo no mundo pagão, no qual se fazia largo uso, sobretudo como forma de celebração pública, em primeiro lugar do imperador, mas também de personagens insignes de importantes cargos administrativos. Os cristãos transferiram também esta forma (eis ainda mais uma vez “tradição e inovação”) para o seu mundo. O conteúdo é completamente novo, mas a forma é aquela consagrada de longa prática e tradicionalíssimo é o arsenal retórico do qual se faz uso. Neste propósito, note-se que não faltou quem, como Basílio de Cesaréia, personalidade significativa também pela inteligência com a qual percebeu a relação entre as letras cristãs e pagãs, se perguntava se a celebração dos mártires, que constituía a expressão mais autentica da fé cristã, fosse compatível com a utilização dos modelos tradicionais da retórica pagã, e auspiciou uma nova retórica especificamente cristã. Enquanto o amigo Gregório Nazianzeno não comungava, de fato, desta preocupação, e continuava tranquilamente a exprimir a sua refinada eloqüência no modo retórico mais tradicional, a preocupação de Basílio foi comum também a João Crisóstomo que, com os outros dois, constitui a tríade dos grandes oradores cristãos de língua grega. Mas aquilo que interessa ressaltar é que esta tomada de consciência estava destinada a permanecer exclusivamente teórica, sem conseguir traduzir-se em uma verdadeira e própria novidade de caráter expressivo. De fato, seja Basílio, seja o Crisóstomo, quando passam da teoria à prática, seja nos panegíricos dos mártires, seja nas homilias, continuam a exprimirem-se nas formas da retórica tradicional. A mesma discrasia entre teoria e prática encontramos, entre os oradores de língua latina, em Agostinho.
Não se consegue separar-se do modo tradicional de expressão, e o motivo principal desta aderência está coligado à instrução escolástica. De fato, também quando o cristianismo torna-se religião de Estado, não consegue substituir com uma escola própria a escola tradicional. Esta, que então era acessível somente a pessoas cultas, que eram aquelas que faziam literatura, também quando o Império torna-se oficialmente cristão, continua fundada no oriente sobre Homero, os líricos, Pindaro, Demostenes, Tucidides, e em âmbito latino sobre Virgilio, Horacio, Terencio, Cícero, Salustio e Livio. O estudante cristão que estuda estes autores, segundo a advertência do Discurso aos jovens de Basílio, procura estar atento a não envolver-se com o conteúdo daquilo que lê, porém, com tal formação escolástica, o modo de expressão a nível literário não poderia não continuar o mesmo de antes.
Concluo exemplificando com um gênero literário secundário que, aos modernos críticos, não agrada em virtude da prevalecente dimensão retórica, mas que teve antigamente notável fortuna: a paráfrase bíblica. Giovenco, um presbítero espanhol versado na métrica latina, escreve, por volta do ano 330, os Libri evangeliorum, quatro livros que transferem em verso hexametro – especifico da poesia épica grega e latina – o conteúdo dos evangelhos de Mateus e João. Os estudiosos modernos liquidam Giovenco em poucas palavras, considerando iniciativa veleidosa e muito incongruente o traduzir em hexametros tradicionais de tipo virgiliano e ovidiano (além do mais carregados e barrocos) o conteúdo dos evangelhos, fascinante na sua simplicidade. E, no entanto, esta obra teve uma grandíssima fortuna e foi muito imitada entre o IV e o VI século. Com efeito, aquela simplicidade evangélica, que os modernos admiram tanto, era muito menos apreciada no tempo antigo, exatamente porque a formação retórica de tipo escolástico, própria de toda pessoa culta, fazia julgar aquela simplicidade como produto de imperícia e ignorância. Por essa razão, a iniciativa de Giovenco, que traduzia o conteúdo evangélico em forma retoricamente elaborada, adequava aquele conteúdo ao gosto das pessoas cultas e o tornava mais fácil e prazerosamente acessível. Daqui o sucesso da iniciativa. Este mesmo gênero literário, que nós hoje consideramos menor, é aquele que evidencia melhor a dialética inovação/tradição, isto é, a capacidade que os cristãos demonstraram de saber desfrutar de uma rica tradição de caráter literário, uma instrumentação retórica de tipo tradicionalmente escolástico, a fim de expressar conteúdo fundamentalmente novo.
Manlio Simonetti
Università degli Studi di Foggia, 17 de abril de 2002.
Tradução: Aurélio Lima Correia / Università Pontificia Salesiana - Roma
[1] Sobre as bastonadas recebidas do mestre Orbílio, cf. Epistulae, II 1, 71
[2] Cf. Annales, XVI, 19

Nenhum comentário:

Postar um comentário