terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL II: As disciplinas fora do ar

Maria do Rosário Caetano

Hoje, constata-se que o cultivo da língua portuguesa, seja no falar, seja no escrever, já não é prática corrente. As camadas jovens da população de são tachadas de portadoras de carência vocabular, desconhecimento das flexões e tempos verbais, pobreza de raciocínio, falta de argumentação lógica, entre outras mazelas.
Será que estes males são exclusivos da juventude? Tudo leva a crer que não. O mal se disseminou por amplas camadas da população e está presente até entre portadores de títulos universitários. Escrever e falar bem, nos dias que correm, são predicados raros.
A que atribuir a proliferação de maus textos e ridículos discursos orais? As causas são muitas: a massificação do ensino, a diminuição da leitura de textos bem escritos, a Reforma de Ensino postulada pela Lei 5692, que deu fim aos cursos de Filosofia, História e consolidou o enterro do latim decretado em 1961 pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases), entre outras.
Para analisar as mazelas geradas pela ausência do latim nos cursos ginasiais e colegiais, ouvimos João Pedro Mendes, Doutor em Cultura Clássica e professor de latim, na Universidade de Brasília.
De antemão, João Pedro alerta: "Não podemos dizer que a crise vivida pelo ensino brasileiro seja conseqüência da retirada do latim dos currículos de cursos ginasiais e colegiais. Há muitas outras causas".

Feito o alerta, João Pedro analisa, em específico, a falta que o latim vem fazendo: "Muitos pensam que a língua latina é supérflua, por tratar-se de uma língua morta. Isto não é verdade. O latim está vivo no português, no espanhol, no francês, no catalão, no provençal, no romeno, no italiano. Para chegarmos ao português do século XX, e compreendê-lo com a profundidade necessária ao bem escrever e ao bem falar, temos que conhecer sua história e sua evolução. E é consenso entre todos os especialistas que o latim ajuda a pensar".
Para comprovar sua afirmação, João Pedro cita exemplo dos Estados Unidos, que, 30 anos atrás, retiraram o latim de suas escolas (o Brasil copiou-lhes o exemplo, alguns anos depois). Na Filadélfia, os estudiosos viram-se, anos depois, frente a problema de enorme gravidade: os povos de origem latino-hispânica, radicados nos EUA, não conseguiam aprender, a contento, o inglês. Depois de muitos estudos, os pedagogos descobriram que a solução era voltar a ensinar latim nas escolas primárias e secundárias. Hoje, na Filadélfia, 20 mil crianças estudam latim".
_ Se fomos tão prontos em eliminar o latim dos currículos secundários, seguindo o modelo norte-americano, comenta João Pedro, espero que agora sejamos também capazes de imitá-los neste compreensão da importância de voltarmos a estudar latim.
Além do mais, acrescenta ele, "o inglês é uma língua que vem do tronco germânico e não do latino. E por todos sabido, porém, que quase metade do vocabulário do idioma inglês vem do latim. No nosso caso, é preciso lembrar que somos um povo que fala uma língua latina moderna. Razão dobrada, termos, então, para nos preocuparmos com o estudo da língua-mãe".
DESCRENÇA
João Pedro vive cercado de livros clássicos. Além do latim, ele conhece uma dezena de outras línguas: o francês, espanhol, inglês e outros idiomas modernos, domina o grego, o hebreu e até línguas tribais da África, onde morou e lecionou durante muitos anos (Moçambique).
Além dos estudos clássicos João Pedro convive com outra preocupação - o desinteresse cada vez maior do Estado pelo ensino da língua latina. De todos os cantos do País e do exterior, ele recebe publicações de latinistas, que lamentam o fim do ensino do idioma. Entre os trabalhos recentes, ele destaca o livro das Letras Latinas às Luso-Brasileiras, de Oswaldo Furlam, editado pela Universidade de Santa Catarina, e Humanitas, anuário da Universidade de Coimbra, dirigido pelo latinista Américo da Costa Ramalho. Este anuário, embora não se atenha à questão do fim do ensino do latim, em certos países, é uma publicação importante que registra a evolução da pesquisa no terreno das línguas clássicas.
O livro de Furlam analisa as ligações da literatura portuguesa e brasileira com a literatura latina, que conheceu sua glória com Virgílio, Horácio e Catulo. Para João Pedro, o professor catarinense busca formas paliativas capazes de abrandar as conseqüências do fim do ensino do latim, nos cursos secundários.
_ É mais do que louvável a atitude do professor Oswaldo Furlam, já que não há nenhum indício de que a língua latina volte aos currículos escolares. Serão necessários, no meu entender, muitos anos para que as autoridades educacionais compreendam a falta que o latim está fazendo.
Por enquanto, constata João Pedro, a consciência desta falta está se fazendo presente entre os professores universitários de português. Muitos vêm constatando que só compreenderão, em profundidade, nosso idioma, se conhecerem sua base - a língua latina. Mas João Pedro é realista: "Se o latim voltar, no próximo ano, aos currículos escolares, nos depararemos com a falta de professores capacitados para o ensino da disciplina". Ele explica por que: "com o fim dos cursos secundários de latim, acabaram-se as oportunidades de trabalho para os profissionais da área. Ninguém mais quis estudar latim, embora ele tenha sido preservado nos cursos superiores de Letras. Veja o caso da UnB. Nós oferecemos três opções: Literatura e Língua Portuguesa; Literatura e Língua Moderna (Inglês ou Francês) e Literatura e Língua Clássica (Latim). Nas duas primeiras opções, temos muitos alunos matriculados. Na terceira opção, porém, só temos uma aluna, que por sinal não é brasileira. Ela é argentina, radicada no Brasil, e sabe que, dificilmente, terá mercado de trabalho ao formar-se".
Infelizmente, diz João Pedro, "as pessoas não compreendem que formando-se em Língua e Literatura Latina serão excelentes professores de português". E por que? O professor responde: "Porque o Latim, como a Filosofia e a História, outras duas disciplinas abolidas no ensino secundário, ajuda a pensar. Quem pensa, com profundidade, é capaz de compreender as estruturas mais profundas da morfologia e sintaxe de uma língua. Conhecendo, ainda por cima, as idéias filosóficas e a história da Grécia e de Roma, berços da cultura ocidental, o estudioso será um excelente professor de Língua Portuguesa. Ao invés de colocar o aluno a decorar regras, ele explicará a razão da ocorrência deste ou daquele fenômeno gramatical".

Dos países de línguas neolatinas, só dois aboliram o latim dos cursos secundários: o Brasil e Portugal, justamente os dois países menos desenvolvidos da comunidade latina. Na França, Espanha, Itália e Romênia, entre outros, o estudo do latim é levado muito a sério.
Em Portugal, país que João Pedro conhece bem, pois nasceu lá e fez seus estudos na Universidade de Coimbra, o latim era disciplina obrigatória para alunos de História, Filosofia, Direito e Letras (em suas opções Anglo-Germânicas; Românicas e Clássicas). Hoje, só os alunos de Letras Românicas e Clássicas têm contato com a disciplina. Em países como a Alemanha e a URSS, o estudo do latim é levado a sério, sendo muito conhecidos seus centros e de Estudos Clássicos.
João Pedro faz questão de dizer que "um estudioso pode conhecer bem a cultura clássica, sem dominar o latim e o grego. Tornar-se um especialista, um conhecedor profundo, porém, só com o conhecimento dos dois idiomas. Afinal, a língua é o complexo instrumento que dá conta da cultura de um povo".
Os editores do livro de F. Kinchim Smith (Latim - Aprenda Sozinho) comentam: "O Latim - em magistral definição - afina e aguça a inteligência, modela e tempera a vontade, domina e subjuga o erro, enobrece e dignifica os sentimentos". A frase é uma citação já clássica, que parece ter efeito apenas retórico. Com mais precisão comenta o professor Kinchim: "A língua latina tem sido sempre o principal veículo da cultura ocidental, continuando a ser a chave imprescindível para o conhecimento, de primeira mão, dos credos, códigos, leis, literatura, filosofia e ciência da Europa Ocidental, considerada em seu desenvolvimento histórico".
Igreja
Contribui muito para o desinteresse pelo latim a abolição do estudo do idioma nos seminários. João Pedro vê a atitude da igreja como forma de não afastar as vocações religiosas de sua missão, devido às dificuldades do estudo do latim. Além do mais, quando a missa passou a ser oficiada em língua vernácula, fundou a necessidade de se cultivar o latim nos meios religiosos. Os padres, na maioria das vezes, professores de língua latina nos colégios secundários, já não conhecem o idioma, como outrora.
Para encerrar, João Pedro destaca a citação do professor Guilherme Braga da Cruz, da Universidade de Coimbra, registrada no livro Colóquios Sobre o Ensino de Latim: "O latim é a língua sobre cujas estruturas lógicas e psicológicas assenta toda uma cultura, que é a nossa; e não é possível entrar no conhecimento e na impressão exata dessa cultura - no nível em que deve possuí-los um diplomado universitário, seja ele um letrado ou um cientista - se o espírito não tiver sido formado naquelas estruturas lógicas e psicológicas, na idade em que se moldam as inteligências e se calibram os caracteres".
O latim, como o russo e outros idiomas, é uma língua sintética, que se calca em cinco declinações e seis casos (Nominativo, Genitivo, Vocativo, Dativo, Ablativo e Acusativo). As línguas modernas, geralmente, são analíticas.
Filosofia
Se para o latim a situação parece tão pouco promissora, no caso da filosofia parece estar mudando. Na UnB, este semestre marcou o retorno do curso de Filosofia. E com uma novidade: sem vestibular. Segundo o professor Celestino Pires, estão cursando Filosofia alunos portadores de diploma superior; transferidos de escolas de Filosofia e alunos com dupla opção. O vestibular só será usado em caso extremo.
Outro professor da UnB, Estevão, está participando de uma comissão do MEC, que estuda a possibilidade de retorno da Filosofia, como disciplina, nos cursos de II Grau. O colégio Quilombo dos Palmares promete, a título experimental, introduzir a disciplina no currículo de seus alunos, no próximo ano.
Caetano Veloso, atento compositor popular, em sua mais recente e comentada criação, Língua, diz: "Gosto de sentir a minha língua roçar/A língua de Luís de Camões/Gosto de ser e estar/ E quero me dedicar/ A criar confusão de prosódia/ E uma profusão de paródias/ Que encurtem dores/.../ E sei que a poesia está para a amizade/ E quem há de negar que esta lhe é superior? / E deixa os portugais morrerem / a minha pátria é minha língua / Fala Mangueira/ ... / Se você tem uma idéia incrível / É melhor fazer uma canção / Está provado que só é possível / Filosofia em alemão / ..."
Pois Caetano Veloso traz à tona a velha discussão. Por que os grandes filósofos são, na maioria das vezes, alemães? E nos, sem latim, filosofia e história, dia chegará em que conseguiremos nem sequer criar canções.
CAETANO, Maria do Rosário. As disciplinas fora do Ar. Correio Brasiliense. Brasília: 02 de julho de 1984.

Um comentário:

  1. A jornalista Maria do Rosário Caetano foi minha aluna brilhante no curso de Letras na UnB em 1983. Era já jornalista formada quando fez o curso de Letras. Sua combatividade democrática ficou gravada nos anais da UnB.Me honro em tê-la como aluna exemplar em meus cursos. A entrevista sobre "As disciplinas fora do ar", feita em 1984 e publicada no Correio Braziliense, com os professores João Pedro Mendes e Celestino Pires, meus colegas, figuras eminentes do Departmento de Filosofia da UnB, mostram a capacidade jornalística de Maria do Rosário Caetano em superar as pequenas superficialidades da informação e preferir se deter a explorar temas menos comuns em nosso jornalismo. Ao entrevistar os dois professores peritos em línguas e culturas clássicas e filosofia, a jornalista mostrou que há que buscar fundamentos sólidos para uma formação universitária e que destes fundamentos devem fazer parte necessariamente o conhecimento da língua portuguesa em alto grau, a cultura clássica e a filosofia. Parabéns a Maria do Rosário Caetano pelo seu trabalho. Ficarei feliz se ela tiver oportunidade de ler este comentário. Desejo-lhe todo o bem e toda a saúde e que prossiga na permanente "luta de esclarecimento" - em sentido frankfurtiano ou não -, tão necessária junto aos cidadãos leitores de nossas publicações jornalísticas. Com o maior carinho e admiração, um beijo. João Ferreira, professor aposentado da UnB.

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