quarta-feira, 8 de junho de 2011

As raízes da metodologia histórica segundo o testemunho da literatura clássica

Arco de Tito, séc I d.C.


História, da raiz que contém, no mundo latino como no mundo grego, a idéia de “ver”, “saber” é, como palavra e como conceito, uma descoberta grega. No mundo grego nasceu a metodologia critica da pesquisa histórica, na história romana ressurgiu e, do século XVIII em diante, foi exercitada na nova historiografia crítica da idade moderna. Creio que seja oportuno, o quanto antes, libertar o senso comum da opinião, suscitada por uma famosa definição de Cícero (De legibus I, 5), de que a história seria, para a cultura grega e romana, mais um setor da retórica e um gênero literário (opus oratorium...maxime) que um método de investigação do real: mesmo atribuindo um grande valor à relação forma-conteúdo na obra do historiador e mesmo procurando definir o genus orationis próprio da historiografia (De oratore II, 62, ss.: cum lenitate quadam aequabili profluens), Cícero (como, de resto, nenhum outro no mundo antigo) nunca acreditou de poder excluir do número dos historiadores aqueles que se revelassem exiles na forma, e que se limitassem a “não serem mentirosos” (De oratore II, 51; De legibus I, 6).
Quando M. Antonio, cônsul durante o ano 99 a.C. e famoso retórico, afirma no mesmo De oratore ciceroniano (II, 62) não conceber a história usquam separatim instructam rhetorum praeceptis, isto significa simplesmente que a história não vem tratada nas obras de retórica propriamente ditas e que não era preciso, para formular uma teoria sobre historiografia, remeter-se a tratados sobre retórica, uma vez que não existiam escritos especiais sobre a história.
Na realidade, além da perfeição formal, à qual o próprio Lívio na sua Praefatio (par. 2) mostra não estar particularmente interessado, o que discrimina o gênero histórico dos outros gêneros literários antigos e modernos relacionados com a narrativa (épica, romance, novela, fábula) é o seu conteúdo: como bem sabia Aristóteles (Poetica 1451b) “o historiador e o poeta não diferem entre si pelo motivo que um escreve em verso e o outro em prosa (mesmo se colocassem em versos a História de Heródoto, esta não deixaria de ser história): historiador e poeta são diferentes porque um narra aquilo que aconteceu e o outro aquilo que poderia acontecer”. E Polibio, em uma dura critica ao historiador Filarco, o qual o acusou de dramatizar os acontecimentos, recorda os escopos diversos da história e da tragédia, a qual, de maneira semelhante à história, trata das ações humanas (II, 56, 11): “o poeta trágico deve, através de discursos persuasivos, atingir e arrebatar os ânimos dos ouvintes com a impressão de um momento; o historiador deve informar e persuadir para sempre, com a verdade dos fatos e dos discursos que narra, aqueles que desejam aprender, porque na tragédia conta-se aquilo que é verossímil, mesmo se é falso, para o engano dos expectadores, na história conta-se aquilo que é verdadeiro para a utilidade daqueles que querem aprender.”
A história assim concebida, com a distinção que Aristóteles e Políbio perceberam de ângulos diversos, mas que remonta já a Hesíodo (Theogonia 26 ss.), entre verdadeiro poético e verdadeiro histórico, é uma descoberta integralmente grega, no nome e no conceito que exprime: não que as antigas civilizações orientais e o mundo pré-clássico tenham ignorado a narração de eventos humanos realmente acontecidos ou presumidos e não tenham manifestado a vontade de recordá-los (a memória é, também no mundo grego e romano, a raiz da história), mas porque somente os Gregos colocaram com clareza, desde a idade arcaica, o problema da historia, isto é, da pesquisa que visa verificar, além das diversas versões, a existência do fato, e a reconstruir, através da critica tó safes tôn ghenomenon (Tucidides), aquilo que do fato pode ser provado. Foi observado que o termo com o qual, de Heródoto em diante, indicar-se-á a pesquisa histórica deriva do linguajar da controvérsia jurídica e do debate cívico: em Homero (Iliada 18, 501; 23, 486) histor é o arbitro que deve julgar os litígios, o juiz ao qual os contendentes se confiam a fim de que entregue o prêmio em questão; ele é, portanto, aquele que decide, depois de ter ouvido as versões das duas partes e depois de ter avaliado quem tem razão. Esta função, que está na raiz de toda atividade judiciária, não era, evidentemente, uma descoberta grega e foi naturalmente exercitada, em modos diversos, nas grandes civilizações que precederam aquela grega; mas é no mundo grego, com Heródoto – e, talvez – já com Ecateo, que o termo característico da controvérsia judiciária é transportado à esfera intelectual da pesquisa histórica. É o próprio Heródoto (II, 113 ss.) que, discutindo sobre o mito de Helena, nos revela a polivalencia que os termos historia e historeo tinham ainda no tempo em que escrevia: historeo é o perguntar de quem indaga, historia é a resposta a esta pergunta, a informação resultante da pesquisa. Neste, e em outra célebre passagem (II, 99, 1) o mesmo Heródoto distingue o conhecimento obtido por testemunho alheio e baseado em informações recebidas do conhecimento direto, autóptico, e declara que se sente obrigado a fazer referimento aos tá legómena (aqui que é dito), mas que não se vê obrigado em acreditar neles. Destes últimos provêm as narrações contrapostas, e geralmente ricas de elementos fabulosos, a partir das quais Heródoto narra, sem tomar posição, mas pondo lado a lado as diversas versões, os antigos conflitos, e também a partir das quais descreve os costumes dos povos longínquos. A passagem ulterior e definitiva na formação do método histórico como crítica do testemunho foi efetuado por Tucidides (I, 22) quando, após ter considerado a deformação inerente a todo testemunho, seja por efeito da éunoia (a “benevolência”, que indica aqui toda forma de tendenciosidade e parcialidade), seja por efeito da mnéme (a “memória”, atrás da qual podemos captar todas as omissões e deformações involuntárias derivadas do espírito de observação, do ponto de vista, da capacidade de recordar da testemunha), afirma a necessidade de sobrepor a critica e de avaliar com akribéia não somente as informações recebidas de outrem, mas também aquilo que advém por conhecimento direto, e funda cientificamente, ele que foi um historiador contemporâneo por excelência, a pesquisa histórica relativa a um passado também remoto.
Afirmando a vontade de contar os acontecimentos de uma guerra que havia vivido em primeira pessoa e da qual havia intuído a importância, desde o primeiro momento, “colhendo informações não das primeiras impressões, nem como parecia a mim” (oud’ôs emoi edókei), Tucidides demonstra haver percebido lucidamente a subjetividade, não somente de toda testemunha, mas também do historiador, e toma contemporaneamente distancia não só do ingênuo positivismo de Heródoto (para o qual aquilo que conhecia por experiência direta era, sem sombra de dúvida, a verdade histórica), mas também do ceticismo da sofistica (para a qual tudo era sempre e somente doxa, opinião, e nenhuma verdade era possível).
Com Tucidides nasce, assim, a história crítica como eurística (pesquisa de todos os testemunhos possíveis: I, 22, 3); como crítica, tomada de consciência das deformações dos testemunhos (“os mesmos fatos são narrados em modo diverso por testemunhas diversas”) e individuação da linha de deformação (éunoia e mnéme); como reconstituição fundada sobre provas, nos limites do possível (hóson dunatón), daquilo que de fato aconteceu (tó safes tôn ghenoménon); com Tucidides nasce a história como ciência do provável (=confiável), não do verossímil: daquilo “que aconteceu”, e do que podemos fornecer provas de que aconteceu, não daquilo “que pode acontecer”, com base nas condições reafirmadas depois de Tucídides, por Aristóteles e Políbio.
A esta metodologia, que após Tucidides torna-se conditio sine qua non para fazer história, se atêm, pelo menos na intenção, todos os historiadores gregos e romanos até Ammiano Marcellino; a esta exigência não se subtrai nem mesmo a nascente historiografia cristã. O terceiro evangelho, do grego Lucas, inicia com uma declaração de método que, nas palavras usadas e nos conceitos, é integralmente “tucididiana”: “Porque muitos tomaram a iniciativa de narrar os acontecimentos (prágmata), que ocorreram entre nós, como os transmitiram aqueles que foram, desde o início, testemunhas oculares (hói ap’archés autóptai) e ministros da Palavra, decidi também eu, egrégio Teófilo, após ter avaliado tudo desde o início, com senso crítico (acribôs), escrever-te ordenadamente, afim de que conheças a segurança (asfáleia) dos discursos que te foram ensinados.”
Há a coleta dos testemunhos de quem teve o conhecimento direto dos eventos, há a análise acribôs, que remete à acríbeia de Tucidides e é termo técnico da historiografia científica grega; há a asfáleia, que corresponde exatamente ao tó safes tôn ghenoménon, a certeza daquilo que aconteceu, de Tucidides.
A fase eurística corresponde à coleta dos testemunhos: na linguagem da história, denominam-se fontes, e os historiadores estão habituados, de Droysen em diante, a classificar as suas fontes, por comodidade e por convenção, em três grandes categorias: os vestígios mudos, que são os traços do passado que chegaram até nós (como os restos de um antigo muro ou de uma estrada, uma tumba, um vaso, um topônimo, um antigo uso popular); os documentos, que pontualmente fixaram por escrito um evento do passado (como, por exemplo, um tratado de paz ou de aliança, um contrato privado, uma, lei, uma carta pessoal, uma moeda com sua inscrição); enfim, a tradição, que é a narração que o passado faz de si através das obras dos historiadores.
Quanto maior é a objetividade da fonte, tanto maior é o risco da subjetividade na sua interpretação: isto vale sempre para os vestígios e, freqüentemente, também para o documento, o qual, para ser utilizado corretamente pelo historiador, deve ser colocado em um contexto preciso, no tempo e no espaço: um erro nesta colocação pode levar a mal-entendidos perigosos. O estudo dos vestígios e dos documentos está coligado, como se sabe, a técnicas particulares, que são tarefa específica das disciplinas consideradas “auxiliares” da história: arqueologia, epigrafia, numismática, papirologia.
A tradição, que compreende as grandes obras de historiografia antiga, mas também as noticias de caráter histórico contidas na remanescente literatura antiga, é a mais importante, mas também a mais subjetiva dentre as fontes: na tradição, os eventos nos vêm já colocados e interpretados segundo a tendência ou capacidade de compreensão do autor que os transmite. O historiador moderno que se ocupa de historia antiga não pode, como Tucidides, interrogar as testemunhas contemporâneas e avaliar-lhes a credibilidade: entretanto, somente tomando contato, de alguma maneira, com as testemunhas contemporâneas o historiador pode chegar a uma reconstrução criticamente confiável: daqui a assim chamada análise das fontes (Quellenuntersuchung), a qual permite retraçar, sob as confusões e freqüentes duplicações dos autores que trabalham em segunda mão, as fontes primárias, os autores contemporâneos que nessas confluem, de captar-lhes a tendência, de individuar a linha de deformação. Não se trata de um trabalho erudito, destinado somente a delinear um hipotético conjunto de fontes, mas de reencontrar as paixões e os interesses do ambiente do historiador, de entrar, ao vivo, em uma época.
À fase eurística segue a fase crítica. A premissa metodológica de Tucídides permanece, no mundo antigo, a discriminante fundamental do gênero histórico: voltando ao De oratore de Cícero, Catulo responde a pergunta de Antonio sobre os dotes necessários para escrever história (II, 51): nihil opus est oratore: satis est non esse mendacem. Cícero está bem consciente de haver reduzido ao essencial os pré-requisitos do historiador e, logo em seguida, confronta a primitiva historiografia romana (para a qual a história era nihil aliud nisi annalium confectio) e a historiografia pré-herodotéia com a historiografia de Heródoto, de Tucidides, de Filisto; porém, ele não se percebeu que, reduzindo o requisito do historiador ao dever de não narrar aquilo que é falso (ou como, antes dele, escrevia Políbio II, 56, 10 “de narrar segunda a verdade todas as coisas ocorridas ou ditas, mesmo se são absolutamente comuns), simplifica e banaliza o preceito de Tucidides, que precavia não somente do falso deliberado, mas também da verdade do “como parece a mim”, e convidava a submeter à critica todo testemunho, e a tomar consciência da própria subjetividade. Das duas fontes desta subjetividade, a énoia e a mnéme, a historiografia clássica pós-Tucidides levou em consideração sobretudo a éunoia, precavendo, com severas declarações de princípio, contra a parcialidade que nasce do favor ou do ódio, e da adulação que deriva da vassalagem a um poderoso: daí as declarações, tão freqüentes nos historiadores clássicos, de querer escrever sine ira et studio (Tacito, Ann. I, 1, 4) e a condenação das histórias ob metum falsae ou compostas recentibus odiis (ibidem). Mas o problema da parcialidade e da imparcialidade, que torna-se o problema dominante da historiografia antiga, é um problema moral, não cientifico; é uma premissa necessária, sem a qual a crítica não pode nem ter início, mas não é a critica da qual fala Tucidides. À deformação voluntária da éunoia Tucidides colocava ao lado, como vimos, a deformação involuntária da mnéme, de todos os condicionamentos ligados à sua própria natureza, que o ser humano sofre no seu modo de conhecer os acontecimentos e de referi-los.
A superação do “como a mim parece”, torna-se tão difícil também a Tucidides, que sente a necessidade de acrescentar “segundo é possível” (hôson dunatón). E, neste ponto, nenhum historiador honesto se sentiria hoje, sob o risco de cair no mais rude positivismo, de ser mais otimista do que o próprio Tucidides.
O momento crítico representa a segunda fase do procedimento metodológico descoberto com a ciência histórica; a terceira fase, a reconstrução, está coligada com o “por em relação” (ou “por em série”, segundo o linguajar dos epistemólogos modernos).
O primeiro “por em relação” é constituído, naturalmente, pelo nexo temporal, a cronologia: também se é verdadeiro afirmar que a história não nasce necessariamente da cronologia (nas civilizações orientais precedentes à grega havia a crônica, mas não a historiografia critica), também o é que não há história sem cronologia, e que aquilo que distingue a lenda e a fábula da história é, antes de tudo, a temporalidade do “era uma vez...”. O modo com o qual o mundo grego e romano estabelece o nexo temporal não é diverso daquele de muitas civilizações pré-gregas e daquele que ainda é usado entre os povos primitivos: o calculo por gerações, a lista dos epônimos (por exemplo, os arcontes atenienses e os cônsules romanos); o calculo por intervalos de anos em relação a uma data-chave; o computo baseado em eras, como o cálculo ab urbe condita ou post Christum natum. Porém, mesmo aqui, a novidade que os gregos portam em relação às civilizações pré-clássicas brota de uma diversa sensibilidade crítica. Heródoto (II, 143) ao referir-se a Ecateu, segundo o qual somente dezesseis gerações de seres humanos o separava da idade dos deuses, os sacerdotes egípcios haviam respondido enumerando trezentas e quarenta e cinco gerações de seres humanos, antes das quais os deuses haviam reinado no Egito e, pela primeira vez, descobre pelo confronto de tradições cronológicas diversas, a diversa autoconsciência dos povos; Tucidides (V, 20, 2) explica a sua escolha pelo calculo de verões e invernos , ao invés daquele por arcontes, eforos ou sacerdotisas eponimas (preferido por Hellanico, que o critica in I, 97, 2), e transforma, deste modo, o uso empírico de uma cronologia em um método.
O uso do cálculo por Olimpíadas, já presente provavelmente na historiografia ocidental desde Filisto e Timeu, e posteriormente adotado por Políbio, permite aos Gregos de desamarrar a cronologia da relatividade dos usos locais e de ligá-la a uma norma pan-helenica, enquanto que o recurso ao sincronismo com os acontecimentos relativos ao mundo romano, ao qual a historiografia grega recorre, já no século IV (e que a nascente historiografia romana adota, pelo que parece, já com Fabio Pittore), permite fundar sob uma base crítica uma historiografia potencialmente universal. Com a difusão do domínio de Roma, faz-se estrada à idéia de que a história não pode mais ser aquela de uma só cidade, de um só povo ou de uma época particular, mas “de todo o mundo, como se fosse uma única cidade” (Diodoro I, 3, 6): o esquema cronológico no qual esta história está inserida combina sincronisticamente os eponimos atenienses com aqueles romanos (segundo o esquema analistico - referente aos Annales, n.do trad. - já preeminente em Roma), e os anos olímpicos. Um passo ulterior nesta direção é dado pela historiografia cristã, com aquela geral revisão crítica do problema cronológico e aquele esquema de rede de sincronismos, não mais relativos somente ao mundo grego e romano, mas também à história judaica e oriental, que é a crônica de Eusébio, fundada sobre a obra de cronografia de Sexto Julio Africano, ponto de chegada da ciência cronológica antiga.
Assim como a cronologia, se revela igualmente importante, para o “por em relação”, a geografia: o acontecimento entra na história quando é inserido, além do tempo, também no espaço, diversamente do que ocorre na fábula, que foge de determinações espaciais precisas e coloca os acontecimentos de seus personagens em países longínquos e desconhecidos. Portanto, não por acaso na Grécia, o conhecimento geográfico precede e acompanha o nascimento da história: a ktisis (história da fundação das cidades) e a periegesis (descrição geográfico-etnológica dos territórios), revelam-se, na evolução literária dos séculos VI e V a.C., as matrizes originais da nascente especulação histórica e daquela geográfica as quais, nascidas no mesmo ambiente cultural e levadas a cabo pelos mesmos autores, procedem depois por caminhos autônomos, sem renegar nunca, por outro lado, a comum origem. A ligação que, na época de Augusto, Estrabão (I, 1, 22/23) reconhece entre a sua obra histórica (para nós perdida) e a sua obra geográfica não é resultado de um insólito acostamento operado pelo historiador-geógrafo de Amaséia, mas explicitação de uma relação que a historiografia grega havia percebido estreitíssima, desde as suas origens, e que a historiografia romana perpetuava.
Se a colocação no espaço e no tempo é o primeiro e fundamental aspecto do “por em relação”, uma colocação sem a qual nenhuma história é possível, os antigos são também conscientes que cronologia e geografia não fazem, sozinhas, a história: Sempronio Asellione, um historiador romano da época dos Gracos, escreve em um fragmento conservado por A. Gelllio (N.A. V, 17, 7 = fr. 2 Peter): Scribere...bellum initum quo consule et quo confectum sit et quis triumphans introierit ex eo bello quaeque in bello gesta sint...id fabulas pueris est narrare, non historias scribere e, em um ouro fragmento, citado logo acima pelo mesmo Gellio (fr. 1 Peter), explicando a diferença entre os Annales e a Historia, diz: non modo satis esse video, quod factum est, id pronuntiare, sed etiam quo consilio quaque ratione gesta essent demonstrare.
A descoberta do assim chamado nexo causal, como momento mais verdadeiro e avançado do “por em relação”, é fruto também da historiografia grega: Herodoto (I, 1,1) escreve a sua história para demonstrar “por que causa (aitia) gregos e bárbaros combateram entre si”; Tucidides (I, 23, 5) indica desde o início as aitiai da Guerra do Peloponeso afim de que não se pergunte ulteriormente porque foi desencadeada uma guerra tão importante. Na realidade ele sabia que a opinião pública atribuía à guerra “causas” diversas (o decreto contra Megara) daquelas que ele julgava determinantes (o crescimento do império ateniense e o medo da parte de Esparta). As causas (aitiai) das quais falam os antigos são os condicionamentos objetivos e os motivos subjetivos das ações humanas que devem ser individuados para além das motivações proclamadas e propagandeadas por tais ações; não são causas deterministicamente estabelecidas: daqui a distinção, já freqüente em Heródoto, entre os motivos enunciados por palavras (logoi) e aqueles pelas quais, em verdade, se opera (ergoi): quo consilio quaque ratione. Disso se segue que as causas podem ser cultivadas em modo diverso, por diversos autores, que é possível um “por em relação” diverso dos mesmos acontecimentos, segundo o juízo dos historiadores, como intui com agudeza o cristão Orósio (III, praef. 1): scriptores autem etsi non easdem causas, easdem tamen res habuere propositas), acrescentando que pretende dar dos acontecimentos não a imaginem, o aspecto exterior, apreciável por um observador superficial, mas a vim, isto é, o significado.
O que constitui na mentalidade antiga, pagã e cristã, o método da historia e fecunda a consciência histórica é, pois, a verificação, mediante a coleção e crítica dos testemunhos, da confiabilidade do fato narrado (o tò safes tôn ghenoménon de Tucidides) e a capacidade crítica de colocar em relação tal fato, inserindo-o em um sistema espacial e temporal coerente e em um desenvolvimento “causal”, a tal ponto de dar ao próprio fato o seu significado. Sobre este ponto o mundo antigo é concorde e a sua herança metodológica permaneceu intacta até nossos dias. A cientificidade da história não deriva, pois, como foi afirmado por alguns epistemólogos modernos (os quais não possuem experiência de pesquisa histórica), da cientificidade das leis que o historiador assume de outras disciplinas: se assim fosse, de fato, o romance histórico poderia ser mais “cientifico” que a história que, como já sabia Aristóteles, deve ocupar-se não daquilo que pode acontecer com base na correta aplicação das “leis” da psicologia, da sociologia, da economia, mas daquilo que aconteceu, freqüentemente no modo mais imprevisível (os antigos sabiam bem que o paradoxon faz parte da história), e, algumas vezes, em conseqüência da loucura dos homens, mas sempre com base na concomitância das circunstancias. A “cientificidade” da história nasce da completeza da fase euristica, da agudeza da analise critica, da capacidade intuitiva do historiador, que é tanto maior quanto maior é o seu conhecimento de um determinado período histórico e do ambiente ao interno do qual deve colher os nexos reveladores para o seu “por em relação”. A cientificidade da história está, como para qualquer ciência, na sua verificabilidade, na capacidade de fornecer as razões do seu procedimento. Nunca será demasiado repetir que a história está fundada sobre o provável, no sentido literal do termo, não sobre o verossímil ou sobre o possível: os momentos mais frágeis de toda reconstrução-interpretação histórica são aqueles nos quais o historiador é obrigado a “deduzir”, a partir de “leis” gerais ou de presumíveis evidencias, aquilo que não consegue documentar a partir das fontes.
No mundo sublunar, que é o mundo em que vivemos e agimos, o mundo da história, reina o “vir a ser” e este é contingente. Suas leis não são mais que prováveis. Contra o cientificismo em história e o historicismo “um estudo de epistemologia histórica pode tranquilamente nutrir-se, como foi dito paradoxalmente por Veyne, unicamente das poucas migalhas que caíram da mesa de Aristóteles e Tucidides.[1]
Marta Sordi, professora emérita de História Grega e Romana da Universidade Católica de Milão
Tradução: Aurélio Lima Correia OSB



[1] Assim termina o texto original: (...) con l’aggiunta della lezione del lavoro degli storici da un secolo a questa parte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário