domingo, 14 de março de 2010

CD: Chants de l'Église Milanaise

A grande figura de Santo Ambrosio domina este canto "ambrosiano" cuja tradição é perpetuada desde o século V d.C. em Milão e em alguns vales dos Alpes italianos. Filho de um alto funcionário do Império Romano, administrador, poeta e orador, o futuro santo foi eleito bispo de Milão por aclamação popular antes mesmo de ter recebido o batismo. Milão, da qual será bispo, era a capital administrativa dos territórios ocidentais do Império Romano. Centro comercial importante, a cidade era o ponto de encontro de todas as correntes culturais. Romanos, Italianos, Gregos e Bárbaros aí se encontravam. Ambrosio sucedeu a um certo Auxentius, bispo grego que professava o arianismo, heresia de origem oriental. Por sua vez, para defender a ortodoxia, Ambrosio se inspira nas obras dos grandes padres da Igreja do Oriente, particularmente Orígenes e Basilio de Cesaréia.
Poeta de talento, o novo bispo compôs numerosos hinos que são ainda utilizados hoje. Santo Agostinho, que esteve também em Milão junto a ele, dá um testemunho muito preciso sobre uma das primeiras manifestações conhecidas do canto eclesiástico cristão. No momento mais forte da crise ariana, a imperatriz Justina, que pendia ao arianismo, envia tropas para tomar posse de certas basílicas da cidade. Ambrósio se opôs e fez com que a multidão de fiéis ocupasse as igrejas ameaçadas. "É nesta ocasião, nos diz Santo Agostinho, que se colocaram a cantar hinos e salmos segundo o costume das regiões do Oriente, para impedir que o povo se deixasse levar pela tristeza e pelo cansaço."
O testemunho de Santo Agostinho é muito precioso. O autor das Confissões era ele mesmo um músico e devia, por conseguinte, se preocupar durante a sua atividade pastoral com a liturgia e com o canto. Atesta que o uso do canto oriental foi mantido, uma vez que a crise ariana terminou. [...]
A comunidade milanesa terá, por bem ou por mal, defender o seu rito e a sua maneira de cantar contra as tentativas de unificação vindas de Roma ou do poder laico. Assim será ao início do século IX, contra Carlos Magno e o Papa Adriano, mais tarde contra Nicolau II e Gregório VII. À época do Concílio de Trento, será necessária toda a autoridade de São Carlos Borromeu, sucessor longínqüo de Santo Ambrósio, para proteger um canto ao qual os milaneses desejavam permanecer fiéis. Certamente, ao curso dos séculos, o canto ambrosiano e o canto romano coabitaram a mesma casa. Parace que certos elementos do primeiro foram integrados no segundo. Descobrir-se-á nas peças escolhidas pelo Ensamble Organum alguns traços melódicos familiares que se repetem até hoje nas liturgias mais usuais. Não é menos evidente que a proximidade com Roma, a uniformização da notação do cantochão em notas corridas "banalizaram" o canto ambrosiano, escondendo em parte a sua especificidade.
Durante as sessões de trabalho que se desenrolaram na abadia de Royaumont, Marcel Pérès e seus colegas aplicaram os hábitos de cantar e os modos das Igrejas de Atenas e Antioquia a um canto que o uso tinha abusivamente romanizado, devolvendo assim as suas cores originais. Retornando às fontes vivas, eles renovaram "na união de vozes e coros" o mesmo gesto do grande bispo de Milão; como era do seu querer, eles cantam "os hinos e os salmos segundo o costume das regiões do Oriente". [...]
Qui jubilat non verba dicit, sed sonus quidam est laetitiae sine verbis. (Agostinho, Enarratio in psalmos XCIX)
Tradução: Aurélio Lima Correia OSB

Nenhum comentário:

Postar um comentário