terça-feira, 17 de agosto de 2010

Pierre Grimal, A Literatura Latina (parte I: Introdução)

Podemos entender por literatura latina o conjunto das obras de intento literário escritas em Latim. Mas esta definição é excessivamente vasta e compreende, de fato, várias literaturas diferentes uma da outra. O uso literário do Latim, que começa a firmar-se no curso do século III a.C., é destinado, de fato, a desenvolver-se ininterruptamente de então em diante. Existe, destarte, uma literatura latina moderna, que segue diretamente aquela dos séculos precedentes. Mas é evidente que essa não apresenta os mesmos caracteres da literatura do período de Cícero ou de Augusto, assim como é certo que a literatura em língua latina de inspiração cristã forma, por sua vez, um setor distinto: as suas raízes, essencialmente orientais, e a sua finalidade, de edificação e conversão, a distinguem da literatura “pagã”, cujo espírito é totalmente diverso. Enfim, uma última distinção: deveriam ser consideradas à parte, inclusive no universo da literatura antiga e “pagã” (o termo “laica” seria preferível, se não apresentasse inconvenientes de outro tipo), as obras compostas entre os séculos III a.C. e o III ou, no máximo IV de nossa era. No curso deste período, de fato, se manifestam possibilidades de renovação que, mais tarde, desaparecerão; a tradição corre ininterrupta desde as origens; as obras são diretamente acessíveis, se não a todos ao menos a quantos adquiriram os rudimentos da cultura. Sem dúvida, é possível reconhecer, a partir de alguns indícios, que a partir deste momento a literatura tende a transformar-se em matéria de escola, portanto a esclerosar-se, mas tal esclerose só será total no período seguinte. Enquanto sobrevive, entre os autores, o sentimento de participar de uma cultura “romana”, é possível admitir ainda a existência de uma literatura latina, no significado aqui entendido.

Esta literatura, de fato, é essencialmente aquela de Roma, da Roma republicana e conquistadora, da Roma imperial e triunfante. É animada pelo espírito romano, celebra a glória daqueles que se tornaram, com muitos sofrimentos, os senhores do mundo: mas se esforça também para definir os valores fundamentais sobre os quais apoiará esta conquista; segue e mesmo antecipa a evolução intelectual, contribuindo deste modo à formação de uma civilização original, que foi precisamente aquela de Roma.

Seria portanto tentador chamá-la de “romana”, mais que “latina”, se também essa definição não comportasse o risco, por sua vez, de criar confusão. Entre aqueles que contribuíram na sua formação, como é sabido, poucos autores foram romanos de Roma: desde o início são súditos ou aliados aqueles que compõem as primeiras obras e à medida que a conquista avança, vêem-se os provinciais, os bárbaros da fronteira, a enriquecer a literatura de seus vencedores, o que deixa entrever como esta literatura seja, na realidade, o produto de uma convergência entre um estado social e político e um estado lingüístico, entre a cidade romana e a língua latina. Aquilo que devemos tentar colher e definir é uma literatura de língua latina e de inspiração romana. Se entende, então, porque esta literatura poderia nascer somente no momento em que, simultaneamente, se encontraram realizadas as duas condições que lhe eram necessárias e porque, além disso, não poderia sobreviver após o desaparecimento de uma das duas dessas condições. Ao seu nascimento, era necessário que Roma fosse já firme e suficientemente forte como centro político, e que a língua latina tivesse conquistado flexibilidade e riqueza suficientes. No momento de seu declínio, foi o crepúsculo do Império, o desaparecimento dos valores tradicionais que lhe comprometeram definitivamente o vigor.

Na metade do século III a.C. o mundo grego atingiu o apogeu da civilização helenística. O tempo dos sucessores diretos de Alexandre (os diádocos) já havia sido encerrado há cinco décadas, os reis da segunda geração consolidaram de maneira estável os seus domínios, o helenismo já havia sido difundido nas regiões internas da Ásia, a cultura grega, estendida, mesmo separada daquilo que outrora a ligava estreitamente à polis, se impõe como o modelo por excelência do ideal humano. Nesta cultura que se irradia até atingir o Mediterrâneo ocidental, com as colônias da Magna Grécia, na Itália, com Siracusa, prospera e esplendida sob Hierão II, na Sicília e com as mais longínquas colônias reagrupadas em torno de Massalia (Marseille), a literatura permanece um elemento essencial. Por um lado, esta conserva, com as obras do helenismo clássico, o tesouro comum dos poetas, dos filósofos e dos historiadores. Mas não está voltada apenas para o passado: os poetas contemporâneos procuram renovar a criação literária, e conseguem com aquela que nós hoje denominamos literatura “alexandrina” (porque se desenvolveu sobretudo em torno de Alexandria, a capital dos Ptolomeus). Callimaco, o maior dos poetas alexandrinos, é o representante por excelência desta estética de poesiaculta, da forma perfeita, que prefere as breves composições ao invés de longos poemas, que usa a matéria dos mitos tradicionais mas naquelas variantes mais raras. Ao seu lado, Teócrito, siciliano de nascimento, que dá dignidade literária ao gênero popular do canto “bucólico”, e transforma em miniaturas preciosas as improvisações dos vaqueiros e cabreiros. Enfim, o terceiro grande nome desta escola alexandrina, Apolônio de Rodes, autor de uma longa epopéia sobre as aventuras de Jasão e de seus companheiros. As suas Argonauticas exercitarão, dois séculos mais tarde, uma indubitável influência sobre as Eneidas. De outro lado, o teatro permanece muito vivo. Não há cidade grega que não tenha o seu próprio teatro, onde geralmente eram representadas as grandes obras do teatro clássico (principalmente aquelas de Eurípedes), mas modificadas a fim de adaptá-las ao gosto contemporâneo: se conserva o diálogo, mas os coros são substituídos por cantos que não possuem mais nenhuma relação com a ação dramática. Com relação ao passado, espetáculo e encenação são mais evoluídos, e as novas representações que os poetas compõem são conformes a esta tendência.

A literatura helenística se propõe como fim a exaltação dos deuses e , através destes, dos novos “heróis” que regem o mundo. Em Alexandria, naturalmente, celebra os Ptolomeus, em outro lugar Antigono Gonata, cuja vitória sobre os rivais foram glorificadas também pelos escultores (como no caso do autor da Vitória de Samotracea). A tradição homérica, continuada na época clássica pelos epinícios de Píndaro, inspira ainda aquela que às vezes é denominada literatura de corte. A Cabeleira de Berenice, escrita por Calímaco, desta literatura é o exemplo mais completo. Esta constante atenção pela glória inspirará também os primeiros poetas romanos que, em certa medida, são também “helenísticos”, se não propriamente “alexandrinos”.

Pela metade do século III a.C., Roma conclui vitoriosamente a primeira guerra contra Cartago. A potencia púnica, que até então ocupava ciosamente a bacia ocidental do Mediterraneo e limitava ao leste a expansão helenística, se encontrava enfraquecida e devia retroceder, abandonando a Roma a zona do mar Tirreno, e aos fócios, aliados dos Romanos, aquela da Ligúria e da Espanha setentrional. Roma cuja parentela com os povos e as cidades helênicas é advertida há muito tempo (o primeiro testemunho seguro, aquele de Aristóteles, remonta cerca de um século antes, mas a tradição era certamente mais antiga e queria induzir que Roma pertencesse ao grupo de cidades cuja fundação estava coligada aos “retornos” dos combatentes de Tróia) não permitiu, certamente, de renovar a influencia política dos gregos sobre o ocidente, mas favoreceu, às vezes inconscientemente, às vezes, todavia, conscientemente, a expansão de sua cultura inclusive dentro de seu próprio domínio. Um testemunho desta simbiose é constituída, pontualmente, do nascimento de uma literatura de língua latina. É certo que a literatura latina é filha da literatura grega, mas não devemos pensar que, inicialmente, essa não tenha sido outra coisa que uma cópia mal-feita, escolástica, das obras gregas. As suas composições são uma transposição, correspondente às necessidades culturais próprias de Roma, mas da função que da matéria daquelas óperas que os romanos viam viver no interior do mundo grego. Criam-se, deste modo, epopéias e um teatro trágico que tenderão a fixar para Roma um passado mítico; a comédia mesma se desenvolverá em torno a valores morais e sociais, como fazia, na Grécia, há três quartos de século, a “comédia nova”. A prosa, aquela dos historiadores, dos legisladores, dos juristas, dos oradores, integrar-se-á também esta no espírito da cidade, e a imitação dos grandes prosadores gregos não será uma escravidão estéril, muito pelo contrário.

É em vão querer opor uma Grécia criadora e uma Roma que dela somente seria uma imitadora servil: a criatividade continua, de um campo ao outro, tanto que a anterioridade da literatura grega explica só como aquela de Roma tenha podido desenvolver-se tão rapidamente e tomar uma espécie de atalho para alcançar a perfeição.

(Tradução: Aurélio Lima Correia, OSB)